De volta para o futuro: que o futuro arrume o passado.
21 de outubro de 2015, a data fixada no filme de 1985 na máquina do tempo em que viajou Marty, para visitar o futuro, finalmente chegou. O que fizemos dela equivale ao que os pais fizeram de seus sonhos, sempre menos de que esperavam e do que os filhos gostariam que tivessem feito!
(trecho do livro Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia, Diana Corso e Mário Corso, Artmed, 2010)
Um bom exemplo do que se espera da combinação do futuro, através da geração a nossa frente, com a ciência com suas promessas, pode ser verificado no filme De volta para o futuro (dirigido por Robert Zemeckis,1985). Marty é um garoto típico dos anos 80, que sofre ao ver sua família medíocre e decadente. Ele não possui a lucidez intelectual da pequena Lisa, mas como bom adolescente percebe que a mãe está infeliz e bebe além da conta, que o pai é um fracassado, que seus irmãos se encaminham para vidas igualmente estreitas. Ele não está nada conformado com esse destino, como os outros da família parecem estar.
Marty possui um amigo, um cientista que em sua comunidade é considerado doido, a quem ele visita regularmente. Dr. Brown trabalha numa máquina do tempo, que opera dentro de um automóvel, mas quem acaba fazendo a viagem é o garoto. Diferente do viajante do romance de ficção científica A Máquina do Tempo (H. G. Wells 1895), que se depara no futuro com horripilantes respostas sobre os destinos da humanidade, Marty viaja ao passado para fazer reparos na vida privada. Ele volta apenas trinta anos, tendo como data de chegada o ano em que seus pais eram jovens e se conheceram. Como qualquer filho, ele é curioso a respeito do ponto de origem de sua família, o encontro de seus pais. Na verdade ele quer saber como eles conseguiram tão pouco e, evidentemente, influenciar o passado para evitar o triste desenlace que é a realidade atual de sua família. Como costuma ocorrer nessas incursões, alterar o passado é muito perigoso, Marty ameaça o próprio nascimento, o qual, como sabemos, é sempre fruto de um acaso que, por qualquer alteração de milímetros dos fatos, poderia não ter acontecido. Novamente ajudado pelo cientista, ao qual ele volta ao passado para informar que seu experimento deu certo, o final acaba garantindo que seus pais se encontraram e casaram, mas o fracasso crônico do pai e a insatisfação da mãe foram revertidos. Marty volta para um futuro de pais realizados e irmãos bem sucedidos. Quem dispensaria uma oportunidade dessas?
Essa aventura pelo passado foi arriscada: em suas andanças pelo tempo, aquela que virá ser a sua mãe, apaixona-se por ele, e obviamente não é fácil repelir um amor assim. Provavelmente, esse evento passado revele mais sobre o seu presente: uma mãe insatisfeita pesa sobre um filho, afinal, se o pai não dá conta da satisfação dela, se a relação não a faz feliz, essa missão recai sobre a geração seguinte? A viagem no tempo busca uma solução para a família, mas também vai em causa própria: erguer um pai para que ele dê conta das demandas maternas.
Marty está na idade de ocupar-se dos próprios assuntos amorosos e as pendências dos pais pesam como nunca nesta fase. Para ter suas histórias de amor, um filho precisa dar as costas para esses vínculos infantis, que seus pais possam abrir mão de sua presença na casa, no meio do casal, no cotidiano, nos projetos futuros. O problema é que a juventude dos filhos inclui o olhar crítico deles que abala tanto o amor próprio dos progenitores. Aliado ao confronto da vitalidade juvenil com o início da decrepitude dos pais, forma-se um conjunto de sentimentos difíceis de administrar. Para os pais é uma época em que estão sendo mais questionados por filhos que já não os idealizam, e que, em função da idade em que se encontram, acabam fazendo algum balanço. Por isso, não raro, também é nessa ocasião que se produz uma separação do casal. Nem todo casal que constituiu uma família tem condições de resgatar ou criar um projeto a dois, principalmente se este se torna necessidade a partir de um abandono: da progressiva partida dos filhos, que outrora polarizavam e dominavam a existência dos pais. É quando um filho mais precisa que seus pais se ocupem um do outro, que sejam tão leves quanto possível, que em geral também ocorre a estes atravessar por crises pessoais que arrastam toda a família num redemoinho de insatisfações.
Marty não é um garoto genial, sua diferença dos outros é a inquietude, a inconformidade com a mediocridade dos seus, assim como a curiosidade que o levou à amizade com o inventor. Ele transcende seus contemporâneos, mas apenas por ser o melhor que um adolescente pode ser: capaz de olhar o estabelecido como se não precisasse ter sido do jeito que foi, nem ser para sempre assim. É a possibilidade e mesmo a compulsão para questionar, para criticar os adultos, pela necessidade de afastar-se e diferenciar-se deles, que faz dos adolescentes (pelo menos os mais interessantes entre eles) os portadores de alguma energia de transformação. Nesse caso, não deixa de ser uma forma de sabedoria, ele é o mais lúcido de sua família, e, portanto, o único capaz de modificá-la.
O cientista maluco é aquele que oferece os instrumentos para a finalidade desse jovem, ele equivaleria ao ajudante mágico tão comum nos contos de fadas, inclusive pela sua presença em outras etapas da jornada, tal como é comum nesse tipo de personagem. Na história de Marty, a viagem no tempo, um velho sonho da ficção científica, fica a serviço de objetivos reduzidos ao universo doméstico, pelo qual é possível visualizar os mecanismos dos votos que depositamos na união das promessas da juventude com as da ciência.
Em relação ao futuro, o horizonte do presente sempre se mostra estreito, pois o futuro é potencial irrestrito, nele cabem todos os sonhos. Viver uma vida é ir vendo reduzir-se o prazo do futuro que nos é reservado, cada década transcorrida é surrupiada de um tempo no qual não estaremos mais aqui para aproveitar e testemunhar. Já o passado, pode muito bem ir sendo re-interpretado, as memórias podem ir se alinhando de forma diferente conforme a narrativa que se faz delas, isso é uma das tarefas centrais de uma análise. A única ressalva para essa liberdade de reescrever a própria história está em que os fatos em si, como doenças, suicídios, acidentes, abandonos, separações, falências, nascimentos, não podem ser suprimidos. Podemos silenciar, tentar esquecer, ignorar, mas eles continuarão existindo e produzindo efeitos. Se bem o futuro se encolhe com o tempo, o passado cresce proporcionalmente. O tempo, portanto, é a dimensão aonde vamos nos deparar com nossos maiores medos, esperanças e, especialmente, com nossa limitação.
Depois de adultos é mais fácil projetar nossos sonhos naqueles cujo reservatório de futuro é maior que o nosso, identificamo-nos com crianças e jovens, como faríamos com qualquer herói que transcendesse nossas incômodas limitações. Mais do que invejar seu potencial, esperamos deles o mesmo que Marty fez com seus pais, que eles revertam nossos fracassos com o sucesso e o conhecimento que poderão contrabandear do futuro para nós.
Esquecemos que nossos descendentes padecerão dos mesmos fardos que qualquer humano, os pais são parte desse passado que pesa sobre os filhos. É dos antepassados, tanto imediatos como remotos, que provém as determinações para as escolhas que farão. A liberdade total de caminhos, que se associa à juventude na fantasia dos adultos, absolutamente não existe. Ao fazer suas escolhas, os adolescentes não são obrigados a seguir os destinos que o inconsciente familiar lhes impõe, mas é inevitável que negociem com esse acervo que os marca, que lhes produzirá sintomas, inibições, mas também modelará seus sonhos. O passado não pode ser suprimido, ele pode ser melhor compreendido, revisto, questionado, narrado de outras formas, só não poderá ser apagado. Não carece mandar nossos filhos para o passado, até por que ele já está, admitamos ou não, impregnado neles.