Decodificando a culpa masculina

Sobre o filme O Codigo da Vinci

Cenas de correrias e empolgações à parte, o popular livro de Dan Brown que está chegando aos cinemas parece demonstrar que o cinema e a literatura podem aproximar-se mais do que acreditávamos: Código da Vinci já é um filme impresso. O que não é uma censura. Nos dias em que andei com ele em baixo do braço, não houve fila ou sala de espera que me irritasse, estava imersa nessa aventura de bolso.

Falta literatura ao texto de Brown, que é pobre. Os personagens são de chorar, mas o ritmo e a cadência de aventuras são os mesmos que nos prendem a um bom filme de ação. Portanto, não é na excelência do texto que devemos buscar a razão do seu sucesso. Contardo Calligaris escreveu que esse livro, assim como o também epidêmico Harry Potter e o erudito O Nome da Rosa, repercutiram face ao valor que palavras e discursos sagrados, mágicos ou filosóficos têm em suas tramas. Num mundo essencialmente hipócrita, de palavras desvalidas e discursos vazios, onde políticos e publicitários mentem e iludem impunemente, a busca de uma palavra poderosa, a ser reverenciada, cultivada e preservada parece devolver-nos uma consistência perdida. O melhor tipo de aventura seria, então, a da busca de um passado de palavras nobres e códigos transcendentais, num suposto tempo em que as palavras tinham mais força e ainda diriam algo verdadeiro.

Minha hipótese é que no feminismo exacerbado está outra chave para decifrar os efeitos do Código. Do início ao fim, estamos frente a um discurso pró-mulheres, melosamente entusiasta e caricatural, destinado a expiar uma culpa histórica. O eixo do livro apóia-se sobre a existência de uma sólida organização secreta milenar destinada a desfazer ou contrabalançar a segregação das mulheres. Somos levados a crer que o cristianismo original teria sido mais equilibrado, mais justo, porém a força do patriarcalismo o dobrou, apagando o lugar da mulher na história de Jesus e seus discípulos. Mas nem tudo está perdido, por sorte, uns sábios guardaram a verdade da mensagem original! Conclui-se que os homens não são tão maus assim, afinal, um seleto grupo deles fazia resistência clandestina ao machismo dominante. Ficamos perguntando-nos a quê se deve toda essa exaltação retroativa do feminino.     

Considerando que a igualdade entre os sexos é uma conquista recente, ainda confusa e mal distribuída no planeta, o livro de Brown tenta redimir a culpa histórica por séculos de discriminação. Podemos dizer que todos esses cuidados de espalhar entre obras de arte e igrejas, inúmeras pistas de exaltação do feminino, funcionaram como forma de compensar a atitude inversa: a anulação do lugar público do feminino.

Enfim, ao contrário do que parece, o Código da Vinci, relativo às mulheres e sua possibilidade de ocupar um lugar histórico relevante, parece não avançar. É o velho expediente de mudar as coisas para que elas permaneçam como estão. É como se dissessem: “fique quietinha, sendo objeto de culto, que do teu prestígio cuidamos nós, os homens”, o que não parece ser um bom negócio. A modificação do status das mulheres na vida pública se conquistará elaborando e incluindo os séculos de silêncio e poder clandestino vividos por elas, uma história da qual ainda temos que nos apropriar.

A presença feminina realmente deixou pistas na história e as encontramos nas manifestações artísticas como nos ensina o Código. Os livros de história social têm se valido destas, assim como de fontes epistolares, analisando a intensa correspondência através da qual a sensibilidade das mulheres ia traduzindo a vida privada nos tantos séculos em que elas foram as sacerdotisas do lar. Recuperar a silenciosa história das mulheres equivale a compreender o próprio patriarcado. Os homens dominaram a política, possuíram os bens e subjugaram as mulheres que não tinham direito a voz nem voto, mas  foram elas que revelaram a intimidade deles para a posteridade.

O rolo compressor da família patriarcal foi tal, que as histórias das sociedades supostamente matriarcais ficaram reduzidas a estudos antropológicos, hipóteses históricas, ficções ou manifestações místicas. Antes de Brown, a também muito bem sucedida escritora Marion Zimmer Bradley, ousou converter a lenda da figura mitológica do rei Arthur ao ponto de vista feminino, em seu conhecido As Brumas de Avalon. Ela foi longe, com menos aventuras e mais romance, mais ao gosto das mulheres, para demonstrar que os homens não passavam de marionetes frente ao verdadeiro poder dos feitiços delas. Para Bradley, Camelot era uma corte matriarcal.

Se elaborar sobre o lugar das mulheres numa sociedade ajuda a compreendê-la, convém questionar qual a finalidade dessa exaltação da Deusa para a discussão sobre a igreja católica que o livro de Brown está oportunizando. A devoção ao sagrado feminino  no Código visa retratar uma série de figuras importantes, entre artistas, cientistas e políticos, como um grupo de militantes da contestação ao poder patriarcal situado dentro do catolicismo.

Ora, Leonardo da Vinci, não precisa venerar a Deusa para ser considerada uma das mentes mais irreverentes da história da humanidade! Gostaríamos, porém, de que além de sua arte, suas descobertas científicas e de sua vida ímpar, ele nos legasse alguns códigos nos quais pudéssemos apoiar a revolução de costumes que mudou a vida de todos no último século e que segue em curso. Se hoje as mulheres e os homens não são mais o que eram, os pais tampouco e muito menos os filhos, seria bem bom que estivéssemos continuando a obra dos nossos antepassados ilustres e não somente inventando modas, que sabe-se lá no que vão dar. Sendo assim, o Código da Vinci  seria um bom calmante para nossos nervos: se parece que hoje tudo está fora de lugar, tranqüilizem-se, isso já estava escrito, é um velho plano sendo executado.

Sendo assim, os homens podem voltar a sentir-se na condução da locomotiva da história. Consideradas difíceis de entender e satisfazer, essas fêmeas que hoje se revelam tão poderosas, podem ser ainda incluídas na linhagem e no rebanho de Cristo. Alívio enfim, se estava tudo previsto, portanto elas terão um limite, uma lei.

A igreja católica deveria  ficar lisonjeada com o livro, afinal, ele dá a essa instituição um poder que ela já não tem. A força que ela ganha nessa trama já faz parte de seu passado, e pelo andar de suas políticas não a recuperará tão cedo. O Código faz parecer que em seu seio houve lugar até para a gestação da ascensão da mulher. Por isso mesmo é tão importante no livro o contraponto com o grupo Opus Dei, que representa o que de mais retrógrado a igreja tem. Dessa contenda, o cristianismo sai ganhando. É para isso que Maria Madalena foi convocada. Quanto a nós, mulheres, agradecemos o prestígio retroativo recebido, mas sinceramente, eu passo…

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