Deficiências e amores
sobre ser e amar a partir do que não se tem
A foto do jornal era de uma passeata peculiar, comemorava a abertura da Semana de Valorização da Pessoa com Deficiência. A imagem mostrava a Miss Deficiente Visual, Gisele Hübe, empurrando a cadeira de rodas de Juliana Carvalho, uma das idealizadoras do evento. Ou estaria Juliana guiando Gisele? Seria natural que a moça cega se beneficiasse dos olhos da cadeirante, que por sua vez contasse com as pernas da primeira. Assim seriam os amores, onde um pode oferecer ao outro o complemento do que lhe falta. Mas se a deficiente visual conduzisse a cadeirante com sua capacidade de andar sem ver o caminho e fosse puxada pela mobilidade que é possível ter sem as pernas?
As pessoas com deficiência desenvolvem dons ímpares, eficiências relativas às quais os ditos normais somos também deficitários. Já pensou em andar vendado, fazer uma refeição ou vivenciar uma experiência artística sem enxergar? Deveríamos fazer isso freqüentemente para perceber como somos limitados em termos perceptivos. Da mesma forma, nos vínculos temos mais a oferecer a partir dos desafios que vencemos frente ao que nos faltou, do que das facilidades que recebemos.
As adversidades grandes ou pequenas que enfrentamos na vida nos obrigaram a inventar-nos além do óbvio, elas estão na origem do que temos de mais interessante. Ao contrário de tornar-se gigolô das próprias desgraças, arauto da superação, de viver recolhendo uma admiração dízimo da pena; trata-se de aprender a ouvir como os que não vêem, a ver como os que não ouvem. São dons criados, tão diferentes dessa fantasia de que dependemos de dádivas da natureza, ou da genética. A vontade de um cadeirante de ir a algum lugar, por exemplo, é a expressão de um desejo do qual muitos são deficientes, eis o oposto da depressão.
Entre os amantes, é comum que se tornem imprescindíveis um para o outro porque se sentem, de alguma forma, inválidos. O somos todos, em tantos sentidos. Do ser amado esperamos que ilumine nossa escuridão, nos carregue para além das nossas forças, só isso. A vida não é muito acessível mesmo, mas somando as saídas encontradas por cada um, os vínculos amorosos nos guiam e conduzem. Bem dizia minha avó: não procure alguém cujas qualidades combinam com as tuas, mas sim aquele cujos defeitos se encaixem nos teus. Acrescento, busque alguém cujas deficiências tenham se tornado soluções, seus obstáculos saídas inusitadas. Os revezes estão na origem de modos peculiares de viver, definem mais do que as capacidades. A questão não é o que o destino nos deu, mas sim o que conseguimos fazer a partir disso.
Sensacional a reflexão como sempre.
Parabéns
Christian Jung