Dentro do mar de Lya
Sobre o livro Mar de Dentro de Lya Luft
Quem escreve resgata e recobra, inventa ou transfigura.Palavras de Lya Luft em seu último livro, “Mar de Dentro”, supostamente um volume de memórias. Sua história é de uma família estável e uma menina amada pelos seus. Não há fatos, há impressões, não é romance nem biografia, mas significado e ressonância. Não há referências claras de tempo e espaço, há sucessão de descobertas, os fatos são datados pelo tamanho dos objetos ao seu redor. Quando pequena, foi intensa, seus relatos são de pensamentos profundos, insônia, angústia, medo do abandono, devaneios, autocríticas.
Hoje temos pressa de descobrir a determinação de tudo, como se pudéssemos assim diagnosticar as intempéries e criar o caldo de cultura perfeito para enfim garantir nossa felicidade. A modernidade ensinou que somos o resultado de nossa história individual. No balanço das realizações adultas devemos lançar os créditos e débitos de nossos seres queridos, se amaram e educaram o suficiente, se nos propiciaram oportunidades. Qualquer fracasso deve ser cobrado do passado, como se fossemos o resultado direto de um planejamento alheio. Lya passa a léguas desta cilada. Afirma e divulga que somos a conseqüência de nossas versões. O livro não se designa uma autobiografia, é mais uma ficção como as outras, como a vida.
O que vivemos será sempre filtrado por nossa subjetividade presente. Por exemplo, as recordações da infância são difíceis de aproveitar porque foram armazenadas com uma lógica infantil e não podemos acessá-las por não dispor mais do programa. O software adulto não “roda” a linguagem infantil. Lya resgata passagens da lógica das crianças, como as várias coisas monstruosas que podem crescer no ventre, árvores ou vermes, sua escuta ao pé da letra, sua dificuldade de compreender o mundo adulto.
As conseqüências dos fatos de uma vida dependem de como estes são processados, de como reverberam. Aquilo que pode ser insignificante para alguns, muda a vida de outros, o que destruirá a de alguém, se tornará uma missão para outro. A única certeza é que o próprio da humanidade é essa riqueza, é que não somos ratos de experiência.
Lya prova que o ser é imprevisível, como o clima e como o mar, e oferece a possibilidade de entrarmos em seu mar de dentro. Aliás, tudo seria mais fácil se todos freqüentassem o seu.