Depressão: a face contemporânea do mal-estar na civilização
Resenha do livro de Maria Rita Kehl
Com esse título, na próxima segunda-feira, a psicanalista Maria Rita Kehl estará na cidade para falar no Fronteiras do Pensamento. Maria Rita é autora de muitos títulos, que se ocupam de conjugar a psicanálise com nosso tempo, desde a feminilidade, o laço fraterno, assim como arte, juventude e muito mais. Desta vez ela irá ao cerne de um de nossos grandes temas, centro de temores, preocupações: a depressão. Seu novo livro, O Tempo e o Cão – a atualidade das depressões é uma oportunidade de aprofundar-se no tema. A autora depreende do tema importantes considerações sobre a modalidade do mal-estar contemporâneo. Desta forma, ela compreende, mas também transcende o problema das depressões como um quadro psicopatológico.
Maria Rita examina a crescente ocorrência dos pedidos de ajuda psicológica que tem como queixa as depressões que, desde a década de 70, tornou-se praticamente uma epidemia. Num primeiro momento, acreditou-se que estávamos diante de um aperfeiçoamento diagnóstico, separar as depressões de outros quadros, parecia uma reclassificação dos dramas humanos com um viés mais apurado. Mas não foi bem isso o que ocorreu: houve mesmo uma intensificação de quadros depressivos e é muito provável que eles estejam conectados com as exigências do mundo atual.
O que a autora defende é que estamos frente a um sintoma social contemporâneo, pois o depressivo faz uma recusa passiva ao establishment. O mundo hoje pede alegria, confiança, euforia, velocidade. Precisamos demonstrar de que vamos conseguir nossos objetivos e que tudo vale a pena. Este seria “o segredo” do sucesso e da felicidade. Partimos da premissa de que viveríamos, se não no melhor dos mundos, num mundo em que seria possível ser feliz. Portanto, o gozo pleno e o bem estar estariam ao alcance de todos que souberem se organizar para bem produzir e consumir.
O depressivo navega na contra corrente, atrapalhando o trânsito: ele está sempre triste, produz pouco ou nada, não acha graça em coisa alguma, e o pouco que faz é de uma lentidão exasperante. Enfim, a chatice do depressivo desafina o coro dos contentes. Isso não dá um caráter político ao ato (passivo) do depressivo. Seu protesto nem um protesto quer ser, não passa de pura negatividade. De fato, ele só consegue ser um peso para si mesmo e para os outros, não há ganho secundário que valha a pena tanta tristeza, como em outros quadros clínicos. Tampouco a autora acredita que a atitude depressiva traga uma mensagem e uma esperança, embora porte uma verdade: seu sintoma denuncia o sem sentido de certas crenças que ordenam nossa vida social.
Menos exigentes, nossos antepassados estariam bem simplesmente por não estarem se sentindo infelizes o tempo todo. Já nós somos infelizes por não sermos felizes o tempo todo, ou seja, há uma injunção à felicidade, um dever ao gozo pleno da vida. O que era uma possibilidade tornou-se obrigação. O prestígio social já não está tanto em conseguir riquezas – cercar-se dos objetos corretos – mas é preciso saber gastá-las, mostrar-se como quem está aproveitando muito. Feliz é aquele que consegue fazer da vida uma festa, pode até ser uma festa rústica, privada, coisa calma, num paraíso natural, mas deve ser uma inequívoca fonte de prazer para o felizardo. A dor de existir está em desuso. As dificuldades inerentes à condição humana estão esquecidas, desconversamos sobre nossa finitude e nossos limites.
O depressivo recusa essa festa, mas a vive como se não tivesse sido convidado, ele rejeita, mas se sente rejeitado. Ele sofre duas vezes: primeiro com seus problemas, que o levaram ao buraco em que está, e depois com a desvalorização absoluta do seu ponto de vista. Vive seu sofrimento como uma deformidade, uma falta moral. Resta-lhe seu discurso queixoso, sua voz dissonante. Isso é tudo que ele tem e constitui o ponto de onde pode partir. Por isso, calá-lo com medicação, confrontá-lo com pensamento positivo, ou um chamado à razão dominante de voltar a gozar só o joga mais fundo na imobilidade.
Uma questão, que certamente não cabe a todos os depressivos, mas a parte deles: é possível pensar num sentimento de não estar a vontade nesse mundo como uma patologia? E outra: sendo a felicidade intransitiva, um subproduto de um outro afazer, mas nos iludindo de que a felicidade é um objeto possível de se adquirir de forma direta, qual é o papel disso na outra epidemia contemporânea que se agrava em paralelo: a drogadição? Se acreditamos que existiria um atalho químico para o bem estar, e que a resolução dos problemas não seriam um necessário ajuste com a vida, com nossos desejos e com nossos semelhantes, por que então só usar as drogas lícitas?
Os avanços das medicações causaram uma revolução na clínica das depressões, mas de viés contraditório. Por um lado, possibilitam aos depressivos graves uma saída. Nesses casos o remédio oportuniza o arranque para uma mudança de vida, podendo inclusive ter acesso a um tratamento psicoterápico. Por outro, em casos menos graves podem perpetuar uma situação, pois anestesiam um sofrimento que apenas permanece inalterado no porão. O problema é que o preço pelo congelamento do conflito é alto, produz um esvaziamento da vida subjetiva, um embotamento da criatividade. Joga-se fora o bebê com a água do banho, pois ao ignorar o conflito, vai para o lixo, ainda que temporariamente, uma parte de si mesmo. E, convenhamos, não somos tão ricos como para dar-nos ao luxo de viver alienados de parte da nossa condição humana.
Resenha publicada no Caderno Cultura do jornal Zero Hora, em 24 de outubro de 2009