Diga-me como te chamas e eu te direi quem és
Sobre o direito ao uso do nome social para travest
Como dizia Simone de Beauvoir: “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. O mesmo vale para os homens. Nasce-se de um sexo, com órgãos dotados para uma determinada missão biológica, reprodutiva, mas viver é sexuar-se, assumir uma identidade de gênero, feminina ou masculina. Essa é uma das mais árduas tarefas de uma existência.
Que o digam os transexuais e travestis, com a cota de incômodos e dores das cirurgias, depilações, remédios e protuberâncias impostas ao corpo. Que o digam as mulheres, pelas mesmas razões. Que o digam cada vez mais homens. Nem sempre nos sentimos de acordo com o sexo com que viemos ao mundo, precisamos nos trajar, fantasiar. Lutamos cotidianamente contra sentimentos contraditórios: de ser uma mulher viril ou um homem afeminado.
A psicanalista francesa Catherine Millot, observou que os transexuais, que pretendem possuir uma alma feminina prisioneira num corpo de homem cuja correção exigem, talvez sejam os únicos que se arvoram de uma identidade sexual monolítica, isenta de dúvidas e perguntas. Pois a estes, assim como a todos aqueles que usam um nome diferente do sexo em que nasceram, o Ministério da Saúde acaba de lhes garantir um direito interessante: o de figurar nos prontuários do SUS, ser atendido e tratado pelo nome com o qual se é conhecido, seu “nome social”.
Ser um homem feminino, não devia ferir seu lado masculino, nem o lado feminino devia sentir-se lesado quando se está sendo uma mulher masculina. A população de gays, lésbicas, travestis, bi e transexuais sofre o cotidiano preconceito por evocar-nos essa incerteza com a qual convivemos. A identidade sexual é decisiva, mas de equilíbrio instável, por isso atacamos paranoicamente todos os que nos lembram disso.
Um transexual precisa estar tomado de certeza para tomar a atitude radical da transformação cirúrgica, o mesmo deve sentir um travesti para assumir sua identidade social. Essas pessoas chegam a um acordo tácito sobre sua aparência e tentarão construí-la de forma que as evidências de fora aplaquem as questões de dentro. Cabe-nos respeitar tal acordo, pois ele é um ponto difícil de atingir.
Passaremos a vida tentando fazer jus ao nome que recebemos que, além de tantos outros desígnios, define nosso sexo. Quando vemos um bebê, se ele não estiver envolvido nas evidências do rosa e azul, ou com um brinco, precisamos perguntar seu nome para saber o sexo. O nome é uma imposição de gênero, tanto quanto o órgão com o qual nascemos, assim como as roupas e adereços com as quais nos envolvem desde pequenos.
Cabe-nos respeitar a presença, o convívio e a coragem necessária àqueles que não puderam ou quiseram se ater às comodidades do óbvio, de viver a identidade que o nome de batismo e o órgão sexual lhes designou. É imprescindível tratá-los em todas as instâncias pelo nome com o qual conseguem viver. Nega-los não vai atenuar nossas dúvidas ou ambivalências.