Do tempo das águas turvas

Banir Lobato pelo racismo impede a necessária discussão sobre os preconceitos e injustiças de cada época.

“País de mestiços, onde branco não tem força para organizar um Ku-Klux-Klan é país perdido para altos destinos”. Publicado na revista Bravo, edição 165, o trecho acima faz parte de uma carta enviada por Monteiro Lobato para um destinatário tão entusiasta da eugenia quanto ele próprio. Antes de ser ventilado o racismo de Lobato, lembro de ter enfrentado um constrangimento pessoal por suas posições.

Tinha o hábito de ler suas histórias para minhas filhas pequenas. Nos deliciávamos ao vê-lo trazer para nosso quintal um exército de personagens clássicos. O ogro verde Shrek, nascido no século seguinte, foi muito elogiado por mixar e recriar os contos de fadas. Só que no Brasil já estávamos habituados a essas paródias graças à irreverência de Lobato. Peter Pan, o Gato Félix, anjos e seres mágicos da mitologia, da literatura e do folclore confraternizam no Sítio do Picapau Amarelo. Era empolgante essa mestiçagem na ficção, algo que aparentemente ele não aprovava na vida real.

Quando apareceram expressões inaceitáveis alusivas à Tia Nastácia, minhas filhas se revoltaram e perderam o entusiasmo pelo Sítio. Acabaram reincidindo, não há menina brasileira que tenha crescido alheia às reinações de Narizinho. Aliás, é bom lembrar que ela casou com o príncipe peixe do Reino das Águas Claras sem nenhum preconceito! Essa pequena crise doméstica deixou-me claro que hoje banhamo-nos em outras águas, bem menos turvas.

Nosso tempo não perdoa o racismo. Hoje é inaceitável a incoerência de valores entre vida pessoal e obra. A hipocrisia, embora eterna, perdeu espaço. Como valorizar algo feito por aqueles que a história condenou? É sempre bom lembrar que os campos de extermínio nazista derramavam sua fumaça fétida sobre as comunidades que viviam coladas a eles. Como era possível àquela gente conviver com esse horror? Condenando Lobato ao ostracismo, banindo suas obras, julgamos que nada se aproveita de alguém assim. Seria o mesmo que condenar todo o legado cultural da população da Alemanha e da Polônia pelo que promoveu. O julgamento é justo e necessário, mas separar o joio do trigo vale a pena. Principalmente por que as crianças precisam saber que o autor genial, assim como o cidadão vizinho ao campo, eram pessoas comuns como nós. Eles cometeram muitos erros e, mesmo hoje, nenhum de nós está livre de imitá-los. Covardia é furtar-se a esse debate com filhos e alunos. A propósito, ontem foi o Dia da Consciência Negra, data pensada para lembrar das atrocidades que somos capazes de cometer.

21/11/12 |
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