Entardecer de domingo

Em algum momento, em geral à tardinha, o domingo nos crava os dentes, sem morder…

Os domingos tem dentes. A expressão é da jornalista Eliane Brum em seu último e tocante livro Meus desacontecimentos (Ed. Leya). O significado dessas palavras qualquer um é capaz de sentir na própria carne. Há domingos que até passam suaves, despercebidos, encontram-nos distraídos. Mas em geral, em algum momento, principalmente à tardinha, o sétimo dia nos crava os dentes, sem morder, é só um aperto quase indolor. Acusamos o golpe discretamente, disfarçamos a instalação dessa farpa de medo que nos cutuca a cada passo, até adormecer.

Talvez sintamos assim porque certamente o fim de semana, mesmo que tenha sido maravilhoso, sempre deixa a desejar. Quem sabe porque temos medo das segundas feiras? Quando conseguimos desengatar da locomotiva dos deveres, duvidamos da nossa capacidade de reingressar nos trilhos. Por sorte, de perto o trabalho volta a parecer factível.

A engrenagem cotidiana nos embala numa fieira de dias que vamos vivendo sem pensar, adiará as esperanças de felicidade, que ficam adormecidas até a noite de sexta. O entardecer dos dias úteis desperta a expectativa de prazeres, da merecida recompensa.

A partir desse momento queremos apenas tudo: ficar junto com a família e os amigos, mas evitar compromissos sociais; amar e ser amados, mas não ter que pensar no outro o tempo todo; empanturrar-nos de comer, beber, passear, dançar, mas sem ressacas; dormir bastante e perder tempo, mas ganhar cultura; relaxar, mas organizar nossas coisas pessoais; jogar conversa fora mas ter diálogos transcendentes. Expectativas contraditórias entre si, conflitantes. No fim, a realização de alguns desses desejos acaba sendo pífia frente ao ressentimento pelos que foram preteridos. Um tempo grávido de promessas é condenado ao aborto dos ideais.

A forma como organizamos nosso ócio diz muito de nós, pois é o tempo que liberamos para realizar nossos desejos. Por isso, Eliane Brum tornou-se uma observadora de domingos: Acredito que não se pode conhecer uma pessoa, um grupo, uma aldeia ou um país sem habitá-lo por ao menos um domingo.

Na melancolia dominical, sentimento quase universal, fica provado que tempo livre é como mente vazia, oficina do diabo. As exigências dos desejos podem ser mais inclementes do que as do trabalho. A síntese deles costuma chamar-se de felicidade. Se por ela entendermos a saciedade plena estaremos condenados ao seu antônimo, a insatisfação, ou à sua ausência, a tristeza.

Nos sábados e domingos não temos obrigações: dia de lembrar que não há prescrição ou cota obrigatória de prazeres a serem vividos e ostentados. Felicidade, a possível, é discreta e nunca completa. Bom domingo!

5 Comentários
  1. Sofia Cavedon permalink

    Maravilhosamente lúcido o artigo, muitíssimo obrigada!

  2. Marianne Hardt permalink

    Encantada com o artigo, pois sempre pensei que esse sentimento estranho que sempre me assola aos domingos, era exclusividade minha, doidice mesmo. Consolador. Parabéns!

  3. Adriane Schein permalink

    Diana, teus textos traduzem até aquelas sensações que passavam quase despercebidas, difíceis de encontrar palavras para descrevê-las. Obrigada por nos brindar com estes “atalhos” para o nosso inconsciente. Um grande abraço!

    • Diana permalink

      gracias querida por tua leitura ao longo de todos esses anos! Abraços!

  4. Amo tanto esse texto e reflexão. Sinto os domingos reflexivos, melancólicos e dependendo da segunda-feira, muito triste. As expectativas são assustadoras, felizes, ansiosas… Cada um sente a sua maneira.

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