Escolha sua cena
Se uma vida fosse um filme.
Imagine se você tivesse que escolher apenas uma cena para representar sua vida, uma pequena seqüência que coubesse em um filme de uns 2 ou 3 minutos no máximo. Essa cena seria a única que você levaria consigo, para passar em companhia dela, e somente dela, por toda a eternidade. Qual seria?
Caso lhe ocorra que essa pergunta é irrespondível, recomendo que assista ao maravilhoso filme japonês Depois da Vida (direção de Hirokazu Kore-Eda, 1998), disponível nas locadoras. Nele pessoas recém falecidas comparecem a uma espécie de casa de passagem, onde os funcionários do local as auxiliam a selecionar uma lembrança particularmente preciosa. Com esse trechinho de memória será feito um filme, que consistirá o único resto do passado que cada personagem poderá levar consigo. Os mortos não poderão carregar mais nada além dessa única bagagem. Não há tristeza nem melodrama, eles parecem resignados a sua condição e os vemos dedicados a cumprir o desafio. A morte é tratada com uma rara delicadeza, todo cuidado é pouco no parto dessas lembranças e os funcionários são solícitos e respeitosos, dando um valor transcendental às ninharias de cada um, já que os filmes devem ser fidedignos.
A princípio, o mais cruel dessa história parece-me ser a necessidade da escolha. Como ficar só com uma colherada, se a vida nos foi servida em tonéis? Nenhum instante seria capaz de representar o todo, nem que encontrássemos uma cena na qual muitos daqueles que amamos se amontoassem, como numa foto de time de futebol. A provocação do cineasta convoca em cada espectador o desafio de escolher sua cena, resignar-se à parte em detrimento do todo.
Para executar essa improvável tarefa há dois caminhos. No primeiro, buscamos alguma lembrança que faça a melhor síntese do que fomos (ou do que temos sido, já que continuamos vivos), capaz de nos representar e bem. No segundo, entregamo-nos sem preocupações à fruição de um determinado instante. Esse último pode ser marcado pela beleza visual, por cheiros, uma luminosidade ou um certo vento. São cenas compostas de toques minimalistas como uma cor, um gesto, um som ou um olhar. Se escolhermos o primeiro tipo de memória, ou seja, aquela que melhor traduza a obra que nossa vida foi, estaremos mais preocupados com a obra do que com a vida. Afinal, quem quer passar a eternidade em companhia daquela cerimônia chatíssima, na qual se recebeu um almejado prêmio?
Os mortos do filme de Kore-Eda escolheram lembranças do segundo tipo. São cenas de um gênero aparentemente efêmero, as quais, em geral, tão toscos que somos, nem damos o devido valor quando as estamos vivendo. Sabe aquela ocasião em que você estava deitado numa rede e a pessoa amada lhe alcançou um copo de suco, interrompendo seu devaneio ou sua leitura com esse gesto atencioso? Provavelmente, ao longo deste verão, podem estar lhe ocorrendo sucessivos episódios dignos de serem eternizados. São situações imprevisíveis, que só revelam seu valor quando recebem a devida moldura que valoriza a cena.
No filme, foi a oportunidade de fazer uma descrição, de narrar esse pequeno trecho de história para alguém, que emprestou poesia ao que poderia parecer sem importância. De qualquer modo, fica essa lição: a felicidade parece estar estocada em pequenos frascos. Talvez momentos sutis como esse sejam do tipo que vale a pena levar para sempre. O melhor seria poder perceber seu encanto enquanto ainda estamos vivos.