Escutar os enlutados

sobre o tabu da morte e as consequentes dificuldades de escutar os enlutados

Eram um casal inseparável. Ambos obstetras, trouxeram centenas de bebês ao mundo. Dizem que os partos estão deixando de ser nascimentos, transformados em cirurgias eletivas, com eles não era assim. Criaram dois filhos, tiveram netos, estavam aproveitando o início de uma nova época, com menos trabalho, curtindo a sensação de dever cumprido. Subitamente ele partiu, sequer teve tempo de perceber a morte. Tranquilo, em casa, em meio a uma frase, foi traído pelo coração. Levou consigo os belos planos de (mais) vida a dois.

Nesse ano minha consulta anual atrasou-se. Não sabia o que dizer a ela, já mais amiga que médica. Nossos papos roubados costumeiramente abarrotavam sua sala de espera. Encontrei-a forte. No consultório que era de ambos, costumava se escutar a voz dele, alta e musical, agora o silêncio se fazia ouvir. Naquele dia fui disposta a inverter as coisas: a consulta era minha, mas queria que os assuntos fossem dela. Sabia que seria difícil escutar o que ela tinha para contar. Também constituo um casal no qual partilhamos o trabalho e o companheirismo dos tempos livres, por isso sempre nos vi neles. É insuportável pensar que um dos dois pode instantaneamente desaparecer. Por isso a missão de escutá-la era difícil. Temia sufocar o encontro com uma verborragia solidária mas vazia.

Descobri que sua relação com a dor foi admirável: deixou-se chorar, enfrentou a solidão, a nova imparidade. Continuou, como de hábito, sendo parteira da vida, desta vez da própria, arrancada a fórceps das suas entranhas. Mas encontrei também o que temia: a infinita solidão dos enlutados. Quando falamos com eles raramente suportamos seus depoimentos. Impomos nossa versão: relatamos o último encontro, nossa reação ao saber da perda, a falta que o falecido nos faz. Sempre temos algo a dizer, não importando se fomos próximos, íntimos ou remotos admiradores. Aliás, quando se trata da dor do outro, raramente conseguimos escutar suas queixas sem interpor nossos depoimentos: “também passei por isso e, veja bem, comigo foi pior”…

Colocar-se na cena serve para partilhar o sofrimento, ajuda na elaboração do trauma. Mas a tagarelice ansiosa que irrompe na hora das condolências é útil mesmo para abafar as palavras do enlutado. Quando estamos fora da dor do viúvo, do órfão, dos que foram privados da presença de um pai, irmão ou, o pior de tudo, um filho, não queremos chegar tão perto. Seu sofrimento assusta. O enlutado nos apavora mais do que o morto no seu caixão. Apesar de ser nossa única certeza, a morte segue tabu e o sobrevivente seu emissário.

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