Eu me inscrevo, me descrevo: escrevendo em mim
Sobre tatuagens e outras marcas corporais
O hábito de enfeitar o próprio corpo com cicatrizes e pigmentos é trans-cultural e milenar, e agora é moda juvenil no mundo globalizado. As tatuagens, que costumavam ser de uso eventual na população em geral, e de uso massivo apenas em grupos marginais e de instituições fechadas, ganharam um novo e amplo público nessas últimas duas décadas. Os piercings acompanharam a tendência, e em menor escala, mas nessa mesma direção, as escarificações para fins decorativos e os implantes subcutâneos.
É difícil fazer interpretações generalizadoras quanto à disseminação dessas formas de uso da superfície corporal, no entanto, acreditamos que certas linhas de força podem ajudar a entender o fenômeno. Analisaremos aqui três tendências que nos aproximam da compreensão do crescimento da importância das marcas corporais: consideramos a tatuagem como uma forma de inscrição na pele de conteúdos que resistem a penetrar no interior do sujeito; acreditamos também que a pele demarcada pelo seu dono constitui uma forma de fazer resistência ao olhar invasivo dos outros, da sociedade, que hoje nos impõe transitar com os corpos perfeitos e seminus; além disso, as dificuldades de crescimento dos jovens, amarrados por décadas à casa paterna, criam a necessidade de colocar no próprio corpo algum limite a esse amor que não se descola deles; enfim, trata-se de diferentes tentativas de demarcação de uma identidade, no limiar da pele
Para não esquecer
A experiência clínica nos mostra que inúmeras tatuagens portam uma significação, porém, seu significado e sua relação com o sujeito são múltiplos. Pode ser uma significação consciente, mas que pede um apoio real, por exemplo, um luto em que a pessoa tatua um nome ou um signo que remete ao falecido, ou mais enigmática, como símbolos evocativos de virilidade, de feminilidade ou ainda de filiação, algo que necessita ser visível e óbvio, ou pode até representar um conteúdo traumático.
Aqui a dificuldade de assimilar algo, que chega a beirar o impossível em alguns casos, é ajudada por uma marca corporal. O medo de esquecer faz com que se use um signo indelével, e fica-se sem chance de perder essa memória. Se algo não consegue entrar, se não temos um lugar para tal fato, é melhor que fique na borda do que em lugar nenhum. O que é comum entre esses casos é que se trata duma significação difícil, e a marca corporal é tanto uma tentativa de simbolização como uma resistência a isso. Ficando no limite da pele, as tatuagens corporais penetram, alteram a superfície, mas pouco se aprofundam. Embora passem a fazer parte da imagem, portanto do sujeito, os conteúdos representados pelas marcas corporais, quer sejam lembranças, sentimentos, inseguranças ou questões pendentes, não habitam o interior do seu portador, como um pensamento o faria, ocupando sua mente. Eles estão sempre lá, mas não passam da porta, sendo assim resistentes à significação, tanto quanto insistentes em sua presença.
Como exemplo de algo que não se quer nem pode esquecer, podemos citar a história de uma menina órfã precoce de pai que tatuou um ideograma que ela dizia significar “amor”. Não foi necessário ir muito longe em sua análise para que ela evocasse o nome de seu pai “Omar”, do qual a palavra é um anagrama, e de quem não queria esquecer. Da mesma forma, podemos refletir sobre um rapaz que tatuou um enorme dragão que envolve o símbolo do seu time, tomando emprestado da sua filiação futebolística uma garra e virilidade que não vê no próprio pai.
Estes casos nos sugerem que uma tatuagem não é exatamente uma decisão consciente, ela é como um sonho, uma produção sintomática a respeito da qual não temos uma compreensão total sobre o significado do que estamos fazendo ou pensando. Porém, diferente dos sonhos, as marcas corporais passam a fazer parte da pele, da imagem, da aparência que nunca se despe.
Pensando as neuroses de guerra, Freud lembrava que os mais afetados pelo horror do que tinham vivido eram os que não portavam nenhuma marca visível. Quem ficou com uma cicatriz, uma lesão, ou perdeu um membro, paradoxalmente, estava menos vulnerável às más lembranças. Um dos dramas de quem passou por experiências limites é não encontrar quem tenha verdadeira empatia com suas memórias. Nesse caso a marca no corpo cristalizava o intransmissível da sua experiência de horror. As marcas do sofrimento ajudam a certificar-se de que aquilo realmente ocorreu, nossa dor procede.
Tudo o que é difícil de internalizar, quer seja porque é insuportável, quer por ser um vínculo frágil, poderá ter o destino de ser escrito sobre a pele. Assim fazem os amantes, principalmente os de relações fugazes, tatuando os nomes dos que querem que para sempre sejam seus, o que em geral deixa-os com um problema quando a paixão acaba. Da mesma forma, chama a atenção o fato que muitos pais têm tatuado o nome dos seus filhos, como forma de consolidar esse vínculo. Antigamente era a palavra “mãe” que víamos tatuada nos braços dos marinheiros, daqueles que não tinham paradeiro, órfãos de pátria ou casa. Essa inversão, na qual não são mais os filhos desgarrados que se tatuam, mas sim os pais amorosos, leva-nos a questionar em que tipo de exílio sentem-se os pais hoje, para precisar carregar seus filhos na pele, evitando perder-se deles.
O corpo exposto
Num dia frio de inverno, uma jovem de longos cabelos lisos usa um blusão de lã que lhe deixa o ventre e a parte baixa das costas ao ar livre. A jaqueta de capuz peludo também não chega até a cintura: nada deve tapar o piercing de umbigo e a lombar. Seu namorado, por sua vez, independente da estação do ano, não pode usar calças, deve andar o ano todo em calções de surfista, enquanto seus braços musculosos, assim como a barriga de sua amada, devem ser mostrados, imunes às baixas temperaturas. Como se vê, literalmente falando, nunca fomos tão pelados. Até as gestantes, que antigamente ocultavam o ventre abaulado sob as batas, hoje o exibem em sumárias mini-blusas.
Para dar conta do ideal de corpo sarado e despido, a menina magérrima, de cabelo alisado no instituto e o jovem malhado precisam ter uma disciplina espartana para manterem-se assim: plásticas, anorexia e uso de anabolizantes não são parceiros incomuns nessa cruzada pela perfeição da imagem. Outrora era a gordura que representava a opulência, assim como a pele alva significava o ócio dos nobres. Hoje a magreza, o bronzeado, o músculo não vem do trabalho em si, mas dão um bom trabalho para serem montados, e igualmente mostram que seu proprietário tem muito tempo livre. Vestimentas e formas do corpo são como uma linguagem, dizem do seu portador como um discurso de auto-apresentação.
Tão disciplinados e expostos estão esses corpos, que eles precisam ficar recobertos de insígnias “indespíveis”, fronteiras últimas sobre as quais o olhar insistente e irrecusável dos outros, assim como suas imposições indumentárias não passarão. O corpo tatuado ou perfurado possui-se a si mesmo, afasta o olhar, por mais acostumado que se esteja com essas práticas. Evidentemente, que um piercing pendente de um umbigo, por mais clichê que ele seja, representa uma possessão pessoal da sua dona, uma obstrução disfarçada do olhar, que revela o orifício, enfeitando-o, mas afasta o olhar e o toque com sua assinatura de metal brilhante. Mesmo os mais acostumados sabem que aquilo foi um ritual de dor, de ferimento e que daquele pedaço de corpo tão a mercê dos outros, o dono se apossou de forma radical, extrema.
Famílias claustrofóbicas
Nunca foi tão difícil de crescer. Os jovens têm grande dificuldade de escolher um caminho, sentem que se desejarem alguma coisa específica, estarão perdendo inúmeras outras oportunidades de prazer e realização, e suas vidas acabam tornando-se eternas promessas que nunca se cumprem. Os pais também têm dificuldade de crescer, pois temem a velhice, o desafio de re-programar a vida, quando restam-lhes menos opções, pois já fizeram algumas escolhas (e nem todas são reversíveis). Nesse sentido, a infantilização dos filhos serve aos pais para tentar parar a corrida do tempo. Ficam então, marmanjos criados, vivendo com a família, mas alguma coisa neles tenta rebelar-se contra essa impossibilidade de tomar sua vida nas mãos e partir.
Colocar marcas corporais, em muitos desses casos, é uma tentativa de afastar esse corpo crescido dos cuidados maternos que se prolongam em moços e moças que tem casa, comida e roupa lavada pela mamãe, quando já poderiam estar providenciando tudo isso por conta própria. A tatuagem, assim como o piercing, são demarcações do território corporal como última fronteira de possessão pessoal por aqueles que não têm mais do que um quarto ou cama, em geral arrumados pela mãe, como seu lugar.
A pele é, neste caso, o limite territorial de invasão e as marcas são tentativas de cercar essa propriedade. Trata-se de uma forma de rebeldia bastante regressiva, pois se almeja, neste caso, muito pouco além da apropriação sobre a própria superfície, o que deixa os outros com grande liberdade sobre o resto das vidas. Estes casos são muito similares aos da nudez obrigatória dos jovens, que obrigados a expor partes do seu corpo ao olhar dos outros, pelo menos as enfeitam com marcas que lembram: esta barriga, este torso, este braço, esta virilha, são meus, ou “são mim”, como diria o psicanalista Ricardo Rodulfo.
Ele lembra-nos que a formação de superfície é uma das funções do brincar, fazem parte dessa atividade de recobrimento de si as babas, papas e cacas que o bebê espalha sobre sua pele e fica chateado quando a higiene o priva disso. Com esse recurso, o bebê não demarca algo que ele tem, mas sim algo que ele é. Tatuar-se, marcar a própria pele é atividade herdeira dessa forma rudimentar de brincar, pois a infância deixa restos que carregamos ao longo de toda a vida, trata-se de colocar a tinta sob a pele, como uma formação de superfície que ninguém poderá limpar, é a vingança do bebê contra a higiene materna inclemente.
O corpo cresce numa tensão ambígua, entre a alienação e a separação, ou seja, entre constituir-se apoiado num olhar de fora, a função especular do olhar materno, e a necessidade duma demarcação pessoal. Esta última é a versão particular, assinatura privada da própria imagem, a tentativa de separação entre o dentro e o fora do corpo, entre o íntimo e o público. É aqui que uma certa rebeldia nos gostos, a irreverência indumentária dos jovens, a colocação de um piercing, uma tatuagem, uma alteração na pele, podem ser tentativas de fabricar essa assinatura.
Uma assinatura é uma forma pessoal de grafar-nos. Ao mesmo tempo em que aceitamos o nome que nos deram e os códigos da lecto-escritura que nos ensinaram, descobrimos um jeito de escrever o nome que é original e particular. Já um apelido é uma corruptela do nome próprio, ou um nome recebido a partir de nossos atos entre os pares e familiares. As marcas corporais fazem com o corpo o que a assinatura e o apelido fazem com a nomeação, são uma personalização, ao mesmo tempo que uma forma de aceitar e acrescentar à nossa identidade, de forma digerida, a influência dos outros.
A vida é passageira: ela anda mais rápido do que nossa capacidade de compreendê-la, ela produz mais eventos do que temos condições de armazenar. Alguns tatuados, fazem de sua pele um livro, uma auto-biografia táctil, através da qual vão acrescentando as marcas do vivido, os nomes das pessoas amadas, as referências culturais e posicionamentos políticos importantes, numa superposição de imagens que juntas descrevem o conjunto de sua história. Muitas dessas pessoas voltam-se para a tatuagem como uma forma de arte, fazem dela um ofício, constituem grupos de tatuados e chegam a ter todo o corpo recoberto dessas citações. Nessa forma extrema, confirma-se a condição de linguagem e de estabelecimento de identidade dessa prática, que se estende a outras formas de modificação corporal. Se da vida pouco se leva, e só tenho esse corpo, que é meu, que sou eu, não nos estranha que tantos estejam a escrever nele o que não pode, não deve, ser esquecido.
Publicado na Revista Pátio, Ed. Artmed, em setembro de 2008
Como sempre me encontro nos teus textos. Fico impressionado com a capacidade que tens de decifrar os comportamentos e melhor, decifrá-los para que possamos entender um pouco mais a vida.
Não tenho tatuagens na pele mas com certeza devo ter as minhas na memória.
O que mais me intriga em tudo isso é um fato de curiosidade. Enquanto jovens e tatuados tudo vai como uma representação dos sentimentos que descrevestes mas e depois de velhos mas digo velhos mesmo, onde de alguma forma amadurecemos pensamentos e vemos que nem tudo era tão como quando jovens. Onde estas tatuagens vão parar? Quando não mais tivermos o corpo malhado e musculoso que perfil terá os jovens de hoje na velhice de amanhã?
Abraço e parabéns
Christian Jung
Diana e Mário
Faço minhas as palavras de Christian Jung e acrecento que assim como as rugas as tatuagens são parte da história do corpo, então me imagino velhinha e contente com as minhas marcas…
Abç Tati
Não vejo como maduro, ou como sinal de evolução humana a tatuagem, parece-me mais uma tentativa infantilizada de chamar atenção para o seu, onde seu corpo , seu eu fosse muito mais importante que o todo, a sociedade, uma tentativa desesperada de aparecer de transmitir alguma mensagem, que não pode ser transmitida de nenhuma outra forma.
Alienam-se num universo limitado, aonde uma cultura, tão arcaica, antiga, infantil, parece fazer mais sentido do que o seu próprio crescimento intelectual, ou espiritual, digo seu crescimento como ser humano, longe da limitações às quais estamos presos. Parece que valorizamos muito o corpo, o tátil, e esquecemos de nosso crescimento intelectual, evolutivo.
Sinceramente não acredito que seja demonstração evolutiva , esta prática, mas sim uma regressão.
Não vejo as tatuagens, ou piercings, ou outros tipos de inscrições no corpo como algo que confronta a sociedade, mas uma tentativa de subjetivação, de constituição de um ser, que muitas vezes é invadido pelo social. Isso não deixa de trazer o Outro que vem e atravessa esse corpo, mas que existe um eu que luta desenfreadamente contra essa invasão social, como uma luta as normatizações, a disciplina social que nos é imposta constantemente. Uma inscrição como essa não pode deixar de lado qualquer forma de intelectuação, porém na sua forma singular e mais íntima, como é o inconsciente. O que não se pode admitir é uma sociedade que julga um modo de vida por uma forma ou tentativa de falar. O que podemos fazer é, talvez, para trazer ao real o possível de ser simbolizado, escutar mais a diversidade subjetiva para que essa fala que diz algo de si ecoe outras formas de subjetivação humana ou, se ainda nessa mesma forma de inscrição, seja passível de elaboração simbólica e se não for, que uma mesma inscrição no corpo, possa continuar produzindo sentidos, histórias.
Parabenizo o autor e demais colocações, me colocando a disposição de um possível diálogo e produção intelectual como o nosso amigo citou.