Fama: a mais cobiçada deusa rasga a realidade

Escrito pela ocasião da morte de Lady Dy, questões

A Fama é deusa antiga, contemporânea dos titãs. É dotada de numerosos olhos e bocas e se desloca com imensa rapidez. Habita o centro do mundo de onde vigia tudo que se passa. Mora num palácio com mil aberturas por onde entram todas as vozes, inclusive as mais sutis. O palácio, todo em bronze, nunca se fecha e devolve amplificadas as palavras que ali chegam. Fazem a sua corte: a Credulidade, o Erro, a Falsa Alegria, o Terror, a Sedição e os Falsos Rumores.

Essa deusa cobiçada aceita a todos. Seja quem for que a fama eleja, não é alçado a este lugar pela coerência e solidez de sua imagem. Sem preconceitos aceitaria do laborioso cientista que descobriria a vacina para a AIDS ao assassino que matasse o Papa.

Somos todos muito inseguros de nosso lugar no mundo. A fama seria um dos poucos lugares onde supomos que encontraríamos repouso. Não haveriam mais dúvida sobre sermos ou não amados, sobre sermos ou não importantes. A nossa perteça ao mundo estaria garantida. Para o bem ou para o mal, o certo é que não seríamos esquecidos. Nossa vida enfim teria um sentido nem que fosse ser instrumento do anjo da morte. Que o diga o assassino de Rabin.

Quem chegou lá costuma lembrar que não é bem assim, que nem tudo são flores e que o trabalho é redobrado. Enfim, seria mentirosa a garantia da fama. Nós, os mortais, não acreditamos. Atribuímos ser uma manobra diversionista, suspeitamos que faz parte da etiqueta da fama desdenhá-la. A despeito das advertências seguimos buscando-a.

Mas atenção, jamais confesse isso a ninguém. Negue sempre, diga que não sonha com isso, fale que a fama não é importante. Diga que seu sonho é uma casa retirada da cidade onde ninguém o incomode. Se há algo que intriga nos mecanismos da fama é essa fingida falta de interesse. Até em análise leva um bocado de tempo para que alguém fale de suas recônditas fantasias de ter o mundo aos seus pés. Mesmo assim o tom é culposo como o de uma confissão.

“Eu me amo, eu me amo, não posso mais viver sem mim.” Este é um verso de uma música do Ultraje a Rigor. A letra é muito boa. Narra, a história de um sujeito triste e sem rumo que resolve seus problemas quando se descobre uma pessoa maravilhosa e apaixona-se por essa imagem. Comovente e patético. O problema é que para os nossos contemporâneos é isso que funciona. Aliás, é isso que eles acreditam que funcionaria. A queixa mais banal que nos chega aos consultórios são os dramas percebidos como da auto-estima. O sujeito vem se queixar que ele não é um objeto o suficientemente bom para ser amado por sí mesmo. Infelizmente o narcisismo não é um problema reflexivo binário (do tipo eu e minha melhor imagem). Fosse, estariam resolvidos os problemas da humanidade, cada um se amaria muito e seríamos todos felizes.

Basta a mais rápida olhada para notar que é justamente o contrário, o sujeito sofre por que não se julga amado e reconhecido pelos outros quanto supõe merecer. Se os outros o amam, então ele é bom para ser amado por sí mesmo. Se ninguém gosta dele, ele não merece ser amado nem por si-mesmo. Raciocínio óbvio: a auto-estima precisa do outro. Ora, se precisa de um terceiro a auto-estima não existe. Ou ainda, existe mas não é auto, é hetero-estima. Tanto faz, o problema é pensar em que diabos de loucura narcísica estamos para não sermos capazes de fazer essa constatação triângular óbvia. É o noutro que leio o valor de meu meu ego. Temos uma paixão de imaginarmo-nos auto-suficientes.

Essa é a grande ilusão narcísica atual: “eu posso não depender dos outros”. Isso se assemelha a um delírio. Não há nada mais fácil de refutar, somos eminenentemente sociais. Nós precisamos desde sempre dos outros e organizamos nossa vida para sermos amados e aceitos. Fazemos qualquer coisa para obter o reconhecimento alheio, não obstante, fingimos que podemos prescindir destes movimentos do campo amoroso.

A fama consiste em uma espécie de universalidade da condição de ser amado. O famoso é objeto unânime de nosso desejo. Isso só nos elucida metade da questão, pois só existem famosos se existir platéia. Qual o papel dos fãs? O que eles querem? O que move alguém a chorar pela perda de uma princesa mais do que por um parente? O que se amava na princesa recém falecida?

A subjetividade moderna é formada por uma bricolagem de identificações. Frágeis que estamos de referências pegamos qualquer coisa que possa nos dar uma identidade.Em tempos de individualismo e supressão das identidades nacionais, via uma efetiva unificação econômica e cultural dos países, temos uma extrema dificuldade em saber de onde viemos, a que ou quem pertencemos e em nome de que seguir andando. A altíssima incidência dos transtornos ligados à angústia, à depressão e ao pânico nas neuroses modernas depõe de um mundo de gente que está constantemente a perder o chão.

.Num bricabraque frenético, amontoamos quaisquer referências que definam uma identidade, uma unidade qualquer que proteja contra o medo da dissolução subjetiva. O sentimento do mundo se esvaindo de significados é bem conhecido do angustiado e assombra o depressivo. Por isso o homem atual tem se revelado pouco exigente em termos de busca de identidades. Onde impera tamanha debilidade subjetiva qualquer novidade convence, qualquer coisa que prometa uma identidade serve.  

Ávidos que somos por modelos idenficatórios a princesa nos oferecia um caleidoscópio completo. Plástica em suas inúmeras representações, formava a figura adequada à posição em que nosso olho colocasse a sua imagem. Ícone de mulher deste século, encarna as duas mãos da fantasia feminina. A primeira, como herança do passado, onde o lugar de uma mulher era dado pelo homem e a segunda, deste fim de século, onde dizer não a um homem pode fazer nascer uma mulher. Era plebéia e era nobre, era nobre por condição e plebéia por opção. Tinha todos os objetos do mundo e era insatisfeita. Qualquer mulher podia dizer: você é rica, bela, maravilhosa e infeliz, enfim temos algo em comum. Soube como ninguém vender uma mercadoria preciosa, sua intimidade.

Solitários, errantes, utilizamos imagens como bússolas, como profanos objetos de culto. Para ser perfeito só aquele que adveio mito depois de uma transformação. Gostamos de lembrar que Xuxa era um “patinho feio”, Einstein um péssimo aluno, e que o grande magnata era um menino pobre. As transformações garantem o caráter livre, original, ímpar, a separação entre a origem e o destino. Um humano comum que nada valia e subitamente transforma-se em objeto de admiração, significa que a graça alcançada tem um caráter externo à sua essência. Não se chega à fama por um determinismo de origem, a beleza, a inteligência e a riqueza podem brotar de onde menos se espera. Assim, seguimos sonhando em dar o grito de independência daqueles que nos originaram, do lugar em que nascemos, da raça, do amor. Nunca se sabe de onde virá o próximo “deus”, o futuro famoso pode ser seu colega nerd, sua colega magricela e desengonçada, ou o amigo pobretão.

Os contos de fadas sempre nutriram o imaginário não por causa das fadas em sí, mas graças às maravilhas que suas mágicas proporcionaram a seres humanos nada mágicos, como nós. As transformações de Clark Kent em Super Homem, de Gata Borralheira em Princesa, de Diana Spencer em princesa de Gales embalam nossas melhores fantasias. Mais do que a realeza, a beleza ou os poderes como estabelecidos, é motivo de fascínio a história de seu vir-a-ser. Shirley Mallmann, ex-operária, leva cada gaúcho consigo às passarelas do mundo. Lá se desfilam verdadeiras transformações, a arte da maquiagem, da adolescente transmutada em vamp, da origem incógnita à celebridade, através de servir de cabide de um nome. Portando “um Versace”, “um Chanel” uma mulher faz valer seu nome próprio. Ela é modelo. Modelada pelo costureiro que lhe empresta seu nome através dos trajes, estas moças e rapazes modelam nosso ideal. Sim, nosso, seu, meu, estes modelos inegavelmente balizam a auto-imagem do mais comum dos cidadãos, assim sabemos onde reside a beleza e por quem os sinos dobram.

Antes que o leitor proteste por sua originalidade, gostaríamos de lembrar que a mídia, a publicidade, os rumos estéticos que nos orientam, obedecem também ao desejo dos consumidores, dos espectadores. A adaptação é mútua e infinita, influenciado e influenciador trocam incessantemente de papéis. As imagens apontam a direção do  desejo e são moldadas pelo próprio desejo que formatam.

Mas o protesto indignado do leitor, proclamado a independência de seu pensamento, assim como o medo paranóico que se tem de ser robotizado pela mídia, bem ilustram este paradoxo. Queremos moldes identificatórios e os famosos o são, mas neles admiramos uma certa imparidade, como a rebeldia da princesa divorciada, por exemplo.

Um exemplo ilustrativo é a propaganda de um produto chamado Free. Este proclama a necessária singularidade do usuário, assim como sua liberdade de escolha. Ora, o dito produto é um cigarro, cujo consumo, sabemos, constitui-se num vício, em relação ao qual não podemos exatamente afirmar que se trata de escolha. Não importa a qual faceta creditamos dependência, seja psíquica ou física, sempre teremos que reconhecer que fumar é um ato de submissão a uma vontade maior que qualquer determinação que o sujeito possa ter. Não há escolha no vício, há sintoma. Quanto à singularidade, a pergunta que fica é, se nos quisermos tão proclamadamente ímpares, de que serve a imagem que a propaganda empresta a um produto enquanto aliciador do consumo? Portanto nem livre nem originais.

Se somos singulares, porque compramos imagens, não conviria erigir a própria como emblemática da convicção do ser? Digamos então que a originalidade é mais um dos atributos necessários à fantasia que adquirimos para o grande baile de máscaras da vida. Da mesma forma que a máquina de influenciar, a publicidade, precisa vender a liberdade de escolha, os famosos precisam proclamar a necessidade de sua intimidade e os incômodos da fama. Aparente contradição, carrega em sí nosso mais entranhado dilema, a ausência de uma essência que sempre o ser humano buscou e hoje aplaca suas incertezas num volátil imaginário social, como antes o fez na religião.

Assim como os famosos desdenham o olhar de que sua fama se nutre, os mortais negam, no delírio narcisita de autoreferência, a absoluta dependência do ser humano do amor alheio. Diferente de outras criaturas nós simplesmente não sobrevivemos sem amor. Basta com que tenhamos sido insuficientemente amados ou desejados em nossas origens, para que passemos o resto da vida lutando com infinitas carências e lacunas.

Chegada a fase da vida em que entramos na sociedade com movimento próprio, em nome próprio, a primeira coisa que fazemos é proclamar a volatilidade do amor. A “ficação”  adolescente, que é mais discursiva do que prática, é a afirmação intensa da não dependência do laço amoroso. Contigo fico hoje, amanhã nada de ti restará em mim, será como se nada tivesse acontecido. Empenhados em apagar os traços e cicatrizes que os outros fazem em nós, dedicamos especial esmero a não reconhecer os que foram impressos em nossa alma por aqueles que mais amamos outrora, nosso pais.

Mas temos que pensar esta modelagem do objeto de desejo humano para além das passarelas própriamente ditas, buscando o ponto cardeal ao qual aponta a bússola das idealizações contemporâneas. Aqui é que encontramos as criaturas da mídia, os seres humanos síntese da transformação em objeto de desejo, os símbolos de um possível vir-a-ser. Aqui encontramos a Princesa de Gales.

Diana Spencer, como foi escrito à exaustão nos jornais recentemente, pertenceu à linhagem de Grace Kelly, transformada em Princesa de Mônaco e Jackie Kenedy-Onassis. Estas transitaram por nossos ideais com uma surprendente eficácia. Foi precisamente uma eficácia como esta que fez com que algumas narrativas populares, entre tantas que já existiram, tornarem-se clássicos. A hábil pena dos irmãos Grimm, de Andersen e outros, celebrizaram histórias que serviam como luva para embalar nossos sonhos. Sempre resta a pergunta de porque estas hisórias, e não outras, encontraram lugar nas narrativas de gerações. Digamos que Branca de Neve e a Bela Adormecida foram tão competentes como Jackye, Grace e Diana. A diferença atual, é o fato de nossas princesas serem de carne e osso, desfilarem seus “Valentino” ou similares para ávidos olhos. É como se exigissemos provas da existência concreta da Cinderela.

Eis então que chega a morte, nossa última donzela. Sua presença clama por explicações, culpabilizações. A morte do famoso é como o despertar de um sonho, cuja existência real se confunde com o relato acordado. Já não sabemos o que realmente sonhamos e o que estamos inventando no ato de contar o sonho. É como se tivessemos sido surprendidos em pleno ato de fantasiar, violentamente somos sacudidos pela realidade. Rapidamente, tentamos dar lógica, reinserir o fato na história que nos embalava. Aqui também a morte, como já fôra o amor, a separação, a infidelidade, a filiação e outros temas problemáticos, são digeridos de forma a glamourizar o insuportável da vida. Impossível pensar Senna sem seus funerais, Senna hoje é Seninha, Cazuza é pensar a Aids, a partir da qual sua obra é relida.

A princesa, morta no exercício da contradição entre o público e o privado será de hoje em diante, impensável sem o quanto sua morte prematura simbolizou. Os descaminhos que sua vida amorosa poderia ainda tomar foram cortados pela imagem agora congelada da mulher que desafiou o maior dos establishments, a realeza britânica em prol da liberdade de amar. Dodi agora é um novo príncipe, o da mulher livre e independente. Como vemos, a fantasia chega providencial para fechar a ferida aberta pela morte. Amém.

Publicado no caderno Cultura do jornal Zero Hora, em 6 de setembro de 1997

Publicado em Acheronte, Número 6, Ano V, março 1999

19/03/99 |
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3 Comentários
  1. Bravo!
    Um texto muito bom, realmente. E sensato!
    Eu sou das poucas pessoas neste mundo que conheço, que vive esta particularidade de CONFESSAR uma devoção cega a esta deusa, a Fama.

    Minha relação com a notoriedade é meio bizarra. Quando era bem jovem, queria ser escritor. Nunca consegui editora para nenhuma das minhas “grandes obras” da adolescência, mas neste percurso, aprendi a escrever. E assim fiz faculdade de Jornalismo, o que foi um erro: eu descobri que meu sonho jamais fora noticiar nada, e sim, ser notícia.

    Na época do vestibular, cheguei a passar na prova específica para Artes Cênicas, mas desisti na hora H porque todo mundo me dizia que aquilo não dava futuro.

    Na faculdade de Jornalismo, nova ofensiva: fazíamos filminhos curta-metragem para as aulas de Cinema, e eu cheguei a vislumbrar ali um caminho. Mas não estourei.

    Como tive que trabalhar para sobreviver, e sentia profundo desgosto da comunicação (com um mercado espremido e pagando pouco), acabei no ramo da informática, e ai sim, tive livros publicados – mas são livros técnicos. Meus amigos acham que dei um grande passo ao tornar-me autor publicado de volumes que são usados em escolas profissionalizantes, e eu mesmo gosto muito do pequeno retorno financeiro disso, mas não era o que eu queria.

    Persegui a fama e o reconhecimento em praticamente todos os campos da atividade artística e midiática. Tudo isso, nas horas vagas, porque enveredei para os concursos públicos e formei uma família. Eu poderia sossegar, apenas trabalhar, pegar meu salário (que não é ruim), e viver a vida. Mas sossegar e desistir dessa luta de quase 25 anos me deixaria pensando “tá, e agora, o que devo perseguir?”

    Persigo a fama desde sempre, e como um personagem atrapalhado de filme de comédia, um Forrest Gump, vou realizando outras coisas.

    Meus amigos apontam o grau de sucesso que alcancei na vida como uma conquista, mas a verdade é que eu apenas vou garantindo um bom padrão de vida à família, e tendo dinheiro para financiar domínios de internet, compra de câmera, talvez uma publicação futura de algum livro.

    Pode ser que um dia eu “estoure”, ou pode ser que eu um dia esteja com 90 anos de idade ainda anônimo – e você pode ter a certeza de que ainda estarei tentando.

    A fama não é apenas o caminho para uma vida fora do rotineiro, ou um caminho para a imortalidade, para um “existir”. Admiro enormemente esses polemistas que causam furor quando escrevem em revistas semanais – eu posso discordar ou concordar com as ideias do sujeito, mas sempre tento capturar o elemento em suas atuações que os leva a centralizar o debate público.

    E sou solidário. Um amigo meu, cujas ideias me parecem todas reacionárias e até meio preconceituosas, escreveu um livro que é um primor de conservadorismo. Como ele não domina as tecnologias da internet, montei a versão e-book do livro dele e ajudei a jogar na rede. Não, não concordo com suas ideias, mas compreendo e compartilho exatamente os mesmos sentimentos de desejo de reconhecimento que ele tem. Somos irmãos de luta, se não de causa.

    Acredito que nada possa ser mais importante na vida do que fazer-se notar. Vencer a morte. Karl Marx morreu há mais de 150 anos, e continua participando de tudo quanto é debate em pleno século XXI. Oscar Wilde, Nietzsche, ou gente mais antiga, morta há séculos, como Platão, continuam a discutir conosco.

    Elvis Presley morreu antes de eu nascer, mas soa voz permanece viva. John Lennon idem. Outro dia, eu assistia a “Nosferatu”, um filme de 1922. Todo seu elenco e diretor estão mortos, mas naquele momento, estavam vivos, ali na minha sala.

    É algo realmente mágico. Uma verdadeira dádiva divina.

    • Diana permalink

      prezado Fábio: tua leitura e tuas palavras deram àquele velho texto uma sobrevida digna dos velhos mestres, mesmo que seja no fugaz momento do encontro dele com teus olhos. são essas pequenas “famas”, melhor dizendo, encontros, que fazem a escrita valer a pena. abraços gratos!
      Diana

  2. Tio bima emici permalink

    Nussa servil pra min estas leituras …. Obg parabéns !!!!sem palavras

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