Fantasia de Brasil
Resenha do livro Fantasia de Brasil de Octávio de Souza
As identificações na busca da identidade nacional.
Será mais um livro sobre o que nos faz brasileiros? A intenção do autor Otávio de Souza não é tanto analisar os traços nacionais distintivos mas a paixão brasileira pela busca da identidade nacional, principalmente entre os intelectuais. A verdade é que vindo de psicanalistas esses livros são raros, paradoxalmente, porque, afinal de contas, se há algo com que lidamos o tempo todo é justamente a questão da identidade.
A falta de uma tradição mais recente faz até pensar que estaríamos invadindo o terreno antropológico, antes mesmo de lembrar que se trata da melhor inspiração freudiana. Aliás convém acrescentar que o livro sai por uma coleção da editora Escuta, denominada Sexto Lobo, da qual autor é um dos diretores, sendo que o mote que a anima é justamente retomar a tradição freudiana de textos de investigação da cultura.
O Brasil se apresenta e é esperado pelas outras nações no papel de exótico, diferente, único. Boa parte do livro é desenvolvida então para dar conta desta identidade extraída deste presumido exotismo. Para a psicanálise a identidade não é da ordem da essência, é sim uma escolha entre determinados traços diferenciais. Para o autor, o nascimento de nosso exotismo é congênito, provém de quando buscávamos nossos traços identificatórios. No momento da busca daquilo que nos diferenciaria entre as nações, ao invés de traços diferenciais, acabamos encarnando a própria diferença. Ficamos sendo então, a nação mais diferente entre as diferentes nações. Este é o caminho que permite metamorfosear os traços diferenciais em objetos de fantasia.
O autor segue e desdobra uma observação de Octávio Paz que dizia que a américa era um sonho da europa, que antes de ser já sabia o que seria, que o nominalismo triunfou, engendrou uma realidade. Que o nome que nos foi dado nos condenou a ser o projeto histórico de um consciência alheia, ouseja, a européia. As fantasias de um lugar utópico no pensamento europeu, depois da descoberta do novo mundo, cristalizaram-se neste novo território. Era um mundo novo onde o futuro deveria ser construído e conseqüentemente, os laços com a tradição desfeitos. Afinal, o novo não precisaria das amarras do velho.
Mas haviam paraísos e paraísos, houve quem veio fazê-lo, houve quem acreditou que ele já estava pronto. E faz toda a diferença trabalhar para o paraíso ou colher os frutos, como no nosso caso. Até aqui não há muita novidade a questão é que, como ninguém, a psicanálise vem denunciando, bem antes que se tornasse senso comum, que as utopias apontam para o pior. Ao mesmo tempo ela tem dito que não vamos nos livrar das utopias pois elas ocupam um lugar estruturante na nossa subjetividade. Quem anda denunciando a morte das utopias apenas não apercebe-se das novas formas que elas vem ocupando. O trabalho do autor é mostrar-nos qual é o peso desta herança inevitável que carregamos: o fardo da gênese nacional enquanto éden.
Um paraíso nada espiritual, pelo contrário, mundano e sensual e com uma promessa de gozo que sabe lá o que lhe faria limite. Quais as conseqüências para o desejar numa economia de tal inflação de gozo? Haveria possibilidade de alguma restrição das satisfações fálicas produzidas através do desejo? O autor lança mão da distinção lacaniana entre gozo fálico e gozo do Outro para dar conta desses impasses.
Ainda a respeito de tal desbordamento da sexualidade uma hipótese bem instigante é trazida, e de aparência paradoxal e certamente a mais polêmica, o Brasil sofreria de uma sexualização da sexualidade. Tal seria um dos efeitos do encontro de dois parceiros sexuais idealizados, no caso os portugueses e as índias. Ora, desde Freud, qualquer função egóica erotizada logo advém inibida.Para o autor a inibição brasileira, por força da desmesurada ilusão do gozo do Outro, vai além de restringir nosso capacidade sublimatória, vital para a transformação do mundo externo, mas atingiria inclusive nosso eventuais encontros amorosos e eróticos.
O autor, depois do lançamento do livro, confessa que sente um certo fracasso na interpretação do que seja a nossa busca por uma identidade nacional e dá-se conta que acaba produzindo mais um livro sobre esta questão. Não creio que seja um a mais qualquer. É certo que venho de uma leitura recente e tenho ainda uma gratidão muito viva para com o livro, principalmente nos efeitos de repensar-me como brasileiro, mas creio que é um livro duradouro no sentido de ser uma referência para quem de agora em diante revisitar o tema. Já era hora mesmo da psicanálise brasileira ganhar mais peso nesse debate.
E como os outros autores, não foge a regra de ser um livro preocupado com um projeto nacional. Otávio é muito sensível a falta de amarras históricas na nossa brasilidade, não que nos falte história mas não nos reconhecemos nela. Por exemplo, ele pergunta-se: quem seriam nossos patriarcas? Existe algum consenso para que possamos situar quais teriam sido os brasileiros que fundaram essa nação? Por que não é possível encarnar em algumas pessoas o mito desta fundação? O autor trabalha também a denegação de situar nossa origem como indígena ou negra. Já que ser filho da europa traz tanta dificuldade quem sabe não seríamos índios? É um raciocínio semelhante a que nos leva a identificarmo-nos com os índios, os únicos colonizados verdadeiramente, para podermos discursar como tendo sido vítimas da colonização.
Ainda pensando o livro como interessado na superação de nossa alienação, a preocupação maior do autor seria de como poderíamos despir a fantasia de exotismo, de como podermos não ceder à tentação de apresentar-nos como o paraíso. Afinal se para a psicanálise um desígnio não é necessariamente um destino, a questão que se coloca é como desinflar aquilo que foi a nossa posição fundante, a posição de ser o projeto utópico da Europa. Como livrar-nos do olhar europeu que nos espera assim.
Usamos e abusamos do vocabulário de analogia familiar para pensar nossa condição, um uso despreocupado de qualquer rigor. Mas como para a psicanálise a paternidade está bem além da retórica e é sim um conceito teórico bem delimitado, o autor faz o possível para ultrapassar o uso enquanto analogia e dedica um capítulo justamente para que se analise todas as conseqüências possíveis da incidência da função paterna no quadro da identidade nacional.
Há ainda um capítulo dedicado a explorar o parentesco do exotismo com o racismo. A encomenda estrangeira do nosso exotismo, não é nada inocente, é também como o racismo uma maneira de lidar com a alteridade, e a angústia que este encontro acarreta.
Para quem está acostumado a pensar as questões nacionais pela literatura, pela crítica literária ou propriamente pelos debates sobre os traços nacionais vai sentir-se em casa. O autor passa por autores clássicos como Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre, Antônio Cândido e vem se adentrando em autores contemporâneos como Roberto DaMatta, Luis Costa Lima, Darcy Ribeiro, Flora Süsskind, Renato Ortiz, Roberto Ventura, Roberto Schwarz e, pela psicanálise, Contardo Calligaris.
O livro é a tese de doutorado do autor pela UFRJ, a marca das exigências acadêmicas é certamente o que mais provoca resistência à leitura. O autor teve a idéia de colocar um apêndice reservado às questões de fundamentação dos pressupostos, mas assim mesmo há muito recheio para um leitor médio. Quem não está interessado no desenvolvimento e na fundamentação psicanalítica de certos conceitos certamente vai achar penoso se orientar até o miolo onde estão as teses do autor. Já quem é do ramo ganha uma excelente síntese teórica sobre o que são identidade e identificações para a psicanálise
Quanto ao título, nada ilustra melhor que estas palavras do autor: “o título Fantasia de Brasil enfatiza o quanto a busca de identidade nacional acabou por resultar na confecção de uma fantasia cujo exotismo dificulta qualquer tentativa de nos apresentarmos em trajes civis”.
Existe um aforisma lacaniano repetido a exaustão: “o inconsciente é o social”. Com variações: “o inconsciente é o discurso do Outro”. Se todos que repetem entenderam não sei mas certamente este livro tem claramente levado isso a sério. Estes aforismas são uma das maneiras da psicanálise ultrapassar a seu modo toda a dificuldade de pensar o individual e o social. Já Freud nós apontava esse caminho de não fazer uma diferença entre uma psicologia do indivíduo e outra que seria do social. As distinções são acadêmicas e não do objeto, são fruto da nossa insuficiência de pensar isto que se nos apresenta como oposição, mas que de fato não existe. Digo isso para não minar essa idéia que a psicanálise fora do divã está fora de seu campo. Ou que existem alguns analistas mais sensíveis às questões coletivas. Estas questões trazidas pelo autor atravessam qualquer brasileiro, cedo ou tarde, em qualquer análise que não seja surda para as questões de filiação, isso vai estar presente.
O livro bem poderia ser um desafio para que os analistas de cada região do país produzissem uma análise semelhante a respeito de cada condição regional. Acredito que cada região tem suas peculiaridades a respeito de sua filiação ao Brasil.
Quando a psicanálise não ousou pensar sua época e os desafios que a cultura em cada local lhe colocou pagou um preço caro. Quando medicalizou-se ou estreitou seus horizontes não foi sem funestas conseqüências. Quase desapareceu na Alemanha e é uma caricatura do que já foi nos Estados Unidos. É vital para a psicanálise brasileira começar a produzir livros com esse interesse.
É um livro bem escrito. Dá gosto de ler, esclareço por que alguns autores de forte influência lacaniana possuem uma língua à parte, Otávio por sorte escreve num português claro, com muita desenvoltura, com passagens impagáveis em síntese e beleza.
E além de tudo, como se isso não fosse o bastante, é um livro para chacoalhar nossa brasilidade, é um livro para descobrirmo-nos muito mais brasileiros do que suspeitávamos.
Caderno de Cultura, jornal Zero Hora, 21 de janeiro de 1995