Faz-se carreto
como mudar – de lugar, de vida – sem ficar desamparado?
Mudança é um caminhão carregando e descarregando pesados móveis, colchões, caixas de livros, panelas e brinquedos, malas de roupa, quadros. Ver o passeio desses objetos pela calçada é um pouco constrangedor e instiga a curiosidade. É como olhar dentro da intimidade daqueles moradores, condenada a desfilar em público, carregada em braços desconhecidos.
As caixas têm dizeres, garranchos, títulos, são como um mapa para que seus donos amenizem a perda de referências. Os primeiros volumes a serem embalados costumam guardar uma lógica, códigos precisos. Por fim, roupas, papéis e objetos viajarão juntos, revelando a desestrutura da alma, verdadeiro estado daquele que precisa desmontar sua vida. Partimos de um lugar que costuma ser tão familiar como nosso próprio corpo, tanto que podemos percorrê-lo na escuridão sem medo. Embarcamos rumo a outro que parece que nunca chegará a ser tão pessoal e íntimo quanto o anterior.
Num primeiro momento, quando faz-se necessária a separação do que vai conosco, tropeçamos com o que tornou-se obsoleto. O balanço acaba sendo feito quando mexemos nas gavetas, no fundo dos armários. Esbarramos em caquinhos de memória que ficaram escondidos em algum canto, quietinhos, mensagens do passado escapando do descarte porque ainda tinham algo a dizer. Cada um desses restos pede uma despedida. Irão fora ingressos e passagens usados, contas que suamos para pagar, enigmáticas despesas insignificantes, bilhetes recebidos ou nunca enviados, fotografias sem álbum, roupas que já não servem, objetos quebrados esperando um conserto que nunca virá. Perdemo-nos em devaneios, caímos no labirinto em que cada uma dessas pontas soltas nos lança. Uma simples gaveta pode ter mil ganchos de memórias.
É preciso finalizar cada uma dessas pendências, descartando, classificando. Nossa vida encaixotada parece menor do que foi. Escolhas implicam em perdas, principalmente das ilusões. Vai fora o que ainda fantasiávamos que éramos e que tínhamos. Acondicionar também é descobrir quais partes nossas são mais frágeis, precisamos seguir com elas, mas sempre ameaçam não chegar inteiras. Levamos conosco também o que nunca foi nem será firme e forte. Também precisamos escolher o que nos é imprescindível, pois muitas caixas demorarão para ser abertas.
Ao chegar, ficamos acampados, rodeados pela desordem, estranhando os barulhos da noite, sem saber para que lado da cama colocar os pés ao acordar. Para mudar, tivemos que encarar o medo da perda de identidade, o risco de sentir-nos exilados, sem pouso. Não somos caracóis, sem casa não derreteremos ao sol e ao sal. Na verdade nossa capacidade de mudança é sempre maior do que apostamos. Com o tempo, nossa mobília interior vai tornando-se embutida, sob medida e parte conosco, sabemos o que em nós é objeto frágil e carregamos com maior cuidado, já descartamos muitas coisas e descobrimos que é possível viver sem elas. Se pudermos sentir-nos em casa dentro de nós mesmos, novos lugares sempre poderão ser um lar.
(publicado originalmente na Vida Simples de setembro 2016)
Bastante atual em meio a tantas migrações e imigrações. Queria saber mais sobre a visão psicanalítica sobre o fenômeno.