Crônica de uma geração

Sobre Feliz Ano Velho de Marcelo Rubens Paiva

Marcelo tinha vinte anos de idade e  deu um mergulho quase fatal, a década de 70 findava, passavam 8 anos que seu pai havia sido engolido pelos porões da ditadura. Assim que pôde, escreveu. Paralisado, teve o distanciamento necessário para contar a vida privada da juventude que cresceu no regime militar. Jovem no tom entesado, maduro como o olhar de um velho, o relato do livro é temporalmente ímpar. Escrito numa época da vida em que se fala mais do que se pensa, se pensa mais do que se entende, se faz mais do que se sente e se sente mais do que se suporta.

A geração hoje quarentona de Marcelo cresceu imersa em silêncio. Os adultos em volta calavam e temiam, quem ousou pagou caro. Gente grande era sempre séria. Sonhos, eram de coragem, gestos de heroísmo, o caminho o do bem. As divergências políticas, que jamais foram poucas, eram defendidas como certezas morais.

Ali nasceu a “Paulistália”, corruptela de Tropicália: manifestações culturais e políticas movidas pelos que não queriam morrer por um ideal, queriam vivê-lo. Não era uma simples ressaca dos anos sessenta, onde sexo, drogas e rock representaram o prazer juvenil versus o pragmatismo capitalista e sua guerra absurda. Aqui reinava o toque de recolher da TFP, respaldado pelo braço armado da repressão, a tal ponto que só restou a intimidade para conceber e experimentar os ideais. Num espaço fechado, fortemente marcado pela solidariedade, germinou o rompimento desses muros invisíveis.

Frente aos de hoje, aqueles jovens pareceriam imaturos, sonhadores, irresponsáveis. Porém, é preciso entender que sobre o fundo da repressão política, toda expressão era superlativa. Pichações, cartazes, passeatas, amores e música foram tomando as ruas e aos poucos se fez a abertura. Os filhos do silêncio cresceram e procriaram num mundo igualmente sofrido, mas agora globalizado.

Foi um mergulho, tornou-se uma queda. As águas devolveram Marcelo para que ele contasse seu tempo rítmico, necessariamente irresponsável para sobreviver à dor. Como ele, milhares de jovens tiveram que romper a paralisia de um país inteiro. Acho que funcionou.

05/09/01 |
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