Filha de criação

Sobre abusos cometidos contra crianças

Filhos de criação vivam ligados a famílias para quem trabalhavam como empregados, mas não recebiam salário. A acolhida que os livrava da miséria de origem incluía moradia, comida, roupas usadas e, com muita sorte, teriam direito a um colégio noturno e lugar na mesa às refeições. Alguns dentre estes, podiam crescer e construir uma vida própria, casavam ou aprendiam algum ofício e partiam, mas em inúmeros casos eram, por isso, considerados traidores. Infelizmente, a maioria acabava incumbida de auxiliar na velhice dos donos da casa, liberando os filhos “de verdade” para seguir seus destinos.

Nem filhos, nem trabalhadores, talvez fosse melhor chamá-los de “criados”. Essa prática seria considerada em vias de extinção, não fosse a revelação de uma versão trágica desse costume: a recente denúncia de uma empresária de Goiânia que submetia uma menina de 12 anos, sua “filha de criação”, a torturas e trabalho escravo. Seis outras vítimas se somaram a ela, contando os maus tratos infringidos pela mesma mulher. Ela afirmou que amarrava, amordaçava e feria a menina para “educá-la”.

Esse fato repercute não só pela barbárie, mas toca num nervo exposto na vida de todos nós: a lembrança da fragilidade da nossa própria infância. As agressões sofridas por essas crianças ilustram tragicamente o quanto nos sentíamos indefesos frente à força e poder dos adultos que nos criavam e de quem dependíamos, e que neles podíamos encontrar o céu ou o inferno. A mesma memória que embala as melhores lembranças dos cuidados que nos dispensavam, do colo, das histórias, das comidinhas, dos momentos de apoio, tem um outro lado. Esse é o que nos lembra das noites insones e com medo, da raiva inútil que nos carcomia quando éramos punidos ou cerceados, fosse a medida justa ou injusta.     

Ser criado por alguém é o contrário de ser seu criado. No primeiro caso, a família é um ninho, um lugar protegido para habitar quando ainda não sabemos voar, no segundo, uma facada pelas costas, uma experiência de escravidão. O frio na espinha desta história de abusos provém do fato de que estas meninas suportaram caladas os maus tratos.

Ora, a confiança básica necessária para ser alguém na vida nasce de uma experiência primordial de proteção, uma criança precisa acreditar nos seus adultos, entregar-se a eles para estruturar-se e ser alguém. Para tanto, precisa contar com o afeto e o senso de justiça destes, mesmo que de vez em quando sinta raiva deles ou pena de si mesma.

Fazer duma criança um criado, maltratá-la, é imperdoável porque o abuso perpetrado por quem deveria cuidar produz um medo paralisante e cria uma falha psíquica quase irreversível, que estraçalha a personalidade. Crianças assim desamparadas se calam, permitem que seu algoz torne-se um carrasco perpétuo em suas vidas. Quem tem um machucado desses não se queixa, o terror produz silêncio porque não permite que o subjugado forme uma identidade própria. O medo é indispensável para fabricar um escravo. Sou atéia convicta, mas por vezes vacilo, temo que o diabo talvez exista.

02/04/08 |
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