Filhos da máquina de sonhos
Sobre o filme “A invenção de Hugo Cabret” e a herança enquanto um enigma.
Por que na ficção os mestres se expressam por enigmas? Quando Harry Potter está com a vida a prêmio, o prof. Dumbledore em vez de dizer o que ele tem que fazer, lança uma charada que deve ser decifrada em meio às correrias. Mas por que não ajudar os meninos, não vê o velho mestre que a situação está preta?
Só que o enigma é o encanto da aventura! Decifrar a frase misteriosa faz com que eles cresçam com a missão. Tornados detetives acabam entendendo no que estão metidos e seu papel na trama. Do contrário, seriam como soldados no front, a quem cabem estreitos heroísmos. Hoje não admiramos a alienação, a obediência; o engajamento deve ser ativo, original, inteligente.
Cada um de nós é, de certa forma, portador de um enigma. Afinal, não teríamos vindo ao mundo à toa. Carecemos imaginar uma sofisticada engrenagem da qual supomos ser peça imprescindível. Esse é o raciocínio do menino Hugo, protagonista do filme “A invenção de Hugo Cabret” de Scorsese. Somos parte de um mecanismo, pensa ele, cada um tem utilidade peculiar. Cabe-nos desvendar o mistério de seu funcionamento, consertar seus estragos.
Ele é aprendiz de relojoeiro, trabalhava com o pai nesse ofício até a morte trágica deste. Ambos dedicavam-se ao conserto de uma espécie de boneco robot, que havia sido encontrado abandonado. Hugo, que já havia perdido a mãe, torna-se órfão e é levado por um tio imprestável a habitar os corredores internos, as entranhas, da estação de trem, onde fazia a manutenção dos relógios. Abandonado ali, vivia clandestino, tendo por companhia apenas o boneco estragado. Se descoberto, seria colocado num orfanato, mas preservava sua liberdade para viver consagrado à tarefa de completar a obra do pai. Estava convicto de que esse boneco, ao funcionar, revelaria alguma mensagem paterna, dando um sentido à perda e à sua vida. Enquanto esgueira-se e realiza pequenos roubos, principalmente das peças necessárias para refazer o robô, seu destino se cruza com o de um velho senhor que se torna parte da charada.
A descoberta final de Hugo é surpreendente: mais que fatos, verdades, há sonhos que são sempre enigmáticos. A herança que recebemos é composta das fantasias dos que nos precederam. Crescer é terminar e recriar o boneco que os pais sonharam. Apesar do valor que nossos ancestrais possam ter provado, seu maior legado foram seus devaneios. Por isso o filme é uma homenagem aos fundadores do cinema, aos artistas, trabalhadores da fantasia. Somos, afinal, uma engrenagem da incansável máquina de sonhos dos homens. Espero que imprescindível.
Incrível , me admiro com a magia dos enigmas , ainda mais no meio do cinema, filmes verdadeiros.. como este. Muito bem feito este artigo , expôs o que acredito que todos que assistiram esse filme de coração perceberam, mas não colocaram em palavras , e você fez essa resenha incrível com todo o seu conhecimento e o enigma oferecido pelo filme. Parabéns e obrigada pelo belo artigo!