Flocos de solidão

Solidão é uma forma peculiar de silêncio

Dizem que em 1984 nevou em Porto Alegre. Dizem, porque não vi. Não foi daquela vez que conheci a neve, na ocasião minha descoberta foi a solidão. Era o primeiro dia de estágio obrigatório em uma área na qual eu não tinha interesse. Fui admitida de favor em uma empresa que aceitou a estagiária mais desmotivada do mundo. Sem saber o que fazer com a recém chegada, puseram-me em um cubículo sem janelas com uma enorme pilha de folhetos para classificar. Bateram a porta depois de informar o horário do fim do expediente. Na hora da libertação, no elevador da firma, todos falavam excitados sobre a neve que viram das janelas e alguns desceram para tocá-la. Minha desolação não podia ser maior. Na época não havia celular, muito menos rede social, e ninguém na empresa lembrou ou sabia que eu estava lá. Não havia um colega para avisar a reclusa do fenômeno.

As facilidades tecnológicas de comunicação que temos são frequentemente acusadas de promover exibicionismo e certa falsidade afetiva. Super-conectados, não faríamos mais do que mascarar o isolamento. Discordo: a verdadeira solidão consiste na inexistência de comunicação, ainda que virtual, exígua. Mesmo que no cubículo estivesse a pessoa pior relacionada do mundo, certamente teria sido informada dos flocos rarefeitos, esparsos, mas festejados pelo surpreendente.

Solidão é ausência absoluta de diálogo, nem que seja imaginário. Não basta ver a neve, para entendê-la é preciso poder contar isso para alguém. Seria suficiente uma frase, enviada a míseros dois contatos virtuais.

Certa vez, sobre um cenário que a impressionou em uma viagem, a escritora Virginia Woolf escreveu que a beleza era tanta que se tornou indescritível. Isso lhe parecia insuportável “como se a natureza tivesse me dado seis pequenas navalhas para fatiar uma baleia”. Em viagens, às vezes fotografamos um cenário assombroso, esperando que a imagem nos balbucie algumas palavras. Na dor a solidão é uma crueldade, mas também nos momentos belos é preciso dizer para crer. Ao ver a neve ou a paisagem inusitadas, carece dividir isso com alguém para entendê-las. Naquele dia ninguém partilhou sua neve comigo.

A solidão é algo muito maior do que a ausência de amigos, família, colegas. Quando ela se apresenta em toda sua dimensão, absoluta como ocorre em certas vidas ou momentos, ela é principalmente uma forma peculiar de silêncio. Precisamos dizer para pensar. As diversas formas virtuais de comunicação funcionam como interlocutores imaginários. São antídotos contra a impessoalidade das cidades, onde é fácil sentir-se invisível, transparente. Nesse sentido, as redes sociais, tão amadas quanto criticadas, acabam sendo imprescindíveis. Todo encontro é válido, sempre é muito melhor que nada.

2 Comentários
  1. cristina lac roehe permalink

    Eh exatamente o que sinto ao entrar no feice, que tanto relutei…50 amigos curtindo, por exemplo, uma simples foto com a minha mae de aniversario, eh nao etar sozinha nessa selva!!???

  2. Como sempre, parabéns pela bela escrita! Sobre o silêncio, não tenho o que acrescentar. Sobre as tecnologias das redes sociais, fico pensando que sim, elas no colocam em comunicação para com o mundo e isso nos tira a condição de solidão. Contudo, me parece que também nos coloca num modo de se relacionar mais solitário em certos momentos, sendo o único recurso de comunicação, o que viraria algo a se pensar. Da mesma forma, essa condição das relações nas redes sociais operam em nós de maneira que evitemos a solidão, algo que, em muitos momentos, é tão importante. Afinal, silenciar a alma e olhar para si na solidão pode ser algo potente. Me parece que esses são os dois pontos a se questionar nessas novas tecnologias, a saber, no que ela empobrece as relações e no que evita que experimentemos na solidão.

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