GAME OVER

Sobre as relações dos adolescentes

– o adolescente enquanto unheimlich para os pais –

Quem já jogou um vídeogame qualquer, sabe a sensação de impotência que nos invade quando surge a fatídica expresão game over. Mesmo que tenhamos feito uma boa pontuação, equivale a: – cara, suas chances acabaram!. Via de regra, incrédulo, o jogador ainda tenta manipular os controles, numa inútil negação do que as letras da tela decretaram. O que deu foi, acabou.

Esta talvez seja uma boa metáfora do estado de espírito que toma os pais quando seus filhos tornam-se adolescentes. Longe de afirmar que os jovens não necessitam mais dos cuidados dos pais, apenas chamamos a atenção para o que ocorre neste momento.

É uma sensação de que o tempo que eles tinham para educar seus filhos acabou. Os controles não funcionam mais, não respondem. Isso explica inclusive algumas desistências. Não são poucos os pais que depois da chegada da adolescência dos filhos jogam a toalha como se não houvesse mais nada a fazer.

O objetivo deste trabalho é versar sobre o caráter traumático do fim da infância para os pais do recém inaugurado adolescente. Muito se fala no luto do adolescente pela infância, pelo corpo infantil, pelos pais da infância… enfim. Ocorre porém, ao que parece, os mais enlutados na situação, os que perderam esse corpinho de criança tão bom de apertar e cheirar, os que perderam o seu papel de poderosos e amados, são precisamente os pais!

A criança tem suas perdas, e falaremos delas, porém a adolescência não é algo que a criança impinge aos pais, por obra e graça das transformações biológicas. Precisamos admitir que a família não responde ao surgimento da adolescência passivamente, ela a constrói passo a passo e baliza cada um dos seus momentos.

Talvez se encontrarmos os pontos frágeis da relação dos pais com seus jovens filhos, estaremos mais próximos da origem das abordagens mais pessimistas que fazemos da adolescência contemporânea. Mais do que partilhar do alarmante que podem ser determinadas vivências adolescentes, os perigos, as irresponsabilidades, etc, pensamos que há neste modo de ver uma postura bastante preconceituosa por parte dos ditos adultos. O adolescente suscita resistências em seus pais e em todos aqueles que se identificam com a posição de adulto, mas porque?

Neste trabalho aparecem muitas crônicas da vida cotidiana, pois a vida também é feita de picuinhas, coisinhas de aparente pouca importância. Aliás, um dos grandes problemas do convívio com jovens e suas problemáticas é que suas banalidades são explícitas, será que conseguimos respeitar alguém que se ocupa de coisas como quem ficou com quem, com que roupa eu vou, o que fulana disse para beltrano, qual time ganhou?

Quando somos adultos, nossos pequenos e desimportantes assuntos privados estão cobertos de uma aura de seriedade Mas como essas lides do amor, da amizade, dos fracassos, vergonhas ou da filiação parecem fúteis quando enunciadas na crueza do discurso adolescente! Mas tenhamos coragem de descer para essa conversinha miúda, vamos ao sofrido cotidiano do adolescente em família, ocupemo-nos do problemático convívio de pais e filhos quando chega a adolescência. Acreditamos que encontrando os pontos frágeis desta relação, estaremos mais próximos da origem das abordagens mais pessimistas que fazemos da adolescência contemporânea.


1.A morte do ideal

Finda a infância, algo de fato acabou. Mas certamente não a importância dos pais, ao contrário do que muitos acreditam. Talvez o que acabou para os pais esteja mais para dream over. O sonho acabou. O filho sonhado, a síntese perfeita do gozo com a realização fálica, algo como um Onassis-Einstein-Don Juan, não se criou. Claro que esta é uma caricatura das mais absurdas, mas busca dar uma idéia do caráter de completude que reveste o ideal com o qual um filho se compara.

Já que falamos em caricatura, existe um exemplo recente: Jessica Dubroff, a menina que morreu na tentativa de ser a mais jovem piloto a atravessar os EUA, era a imagem do filho prodígio que viria redimir os pais de suas limitações. Deu no que deu…

Desde que descobrimos o “sentimento de infância”, conforme teorizado por P. Ariés(1), estamos conscientes da influência do ocorrido na infância sobre o adulto resultante. A teoria psicanalítica passou a ter parte importante como causadora dos cuidados e investimentos que cercam a infância ao aprofundar os conhecimentos sobre a existência e importância das vivências infantis na constituição psíquica. Conseqüência óbvia disto é que proliferem as atenções e as expectativas sobre as crianças. Tanto investimento porém, não consegue gerar mais do que pobres e incompletos seres humanos e é frente à apresentação deste triste resultado que o sonho acaba.

A adolescência é o momento de ruptura com a posição, própria da infância, de ser uma possessão dos pais. Durante a infância o sujeito pode reagir ou mesmo se opor às imposições dos desejos inconscientes dos pais através de sintomas imbricados num cotidiano de cuidados maternos e intervenções educativas. Criam-se quadros que dificultam o dia a dia e confundem a família, mas um cordão umbilical ainda faz trocas subjetivas entre o inconsciente de pais e filhos. Por isso atendemos também os pais de nossos pequenos pacientes e isto é parte intrínseca da análise destes. A adolescência tem como premissa o corte deste cordão, uma distância se consolida.

Tentemos descrever um quadro imaginário da situação: ao findar a infância, temos agora um jovenzinho visivelmente espichado, o puber, com alguns sinais de sua maturidade sexual: menarca, pelos, oleosidade da pele, mas, principalmente, o princípio de um silêncio. Existem poucas coisas tão paranoizantes quanto o olhar de um puber. Um leve asco toma conta da expressão do jovem, os olhos semi-cerrados, a boca de lábios colados dá lugar a um sorriso infantil e levemente constrangido quando convocado a falar, mas ele ainda está lá entre os adultos. Vai de arrasto aos programas familiares, sempre meio deslocado, mas presente. Mas aqui estamos só nos preparativos da adolescência propriamente dita.

Quando a adolescência começa ele não é mais visível. E o fulano, não veio, não está? Está na casa da namorada, saiu com os amigos, foi com um amigo fazer alguma coisa certamente fora de casa. Se estiver em casa, está dormindo, trancado no quarto ou numa interminável conversa telefônica. Este é o silêncio. Ele está lá, mas a comunicação é impossível.

Não bastasse isto, há os momentos de encontro, as explosões. São aqueles em que pais e filhos colidem pela casa e tentam falar, aumentando o volume, sem por isso viabilizar a mútua audibilidade. Retornam após para a solidão queixando-se respectivamente com amigos, namorados, marido ou esposa da comunicação malograda, relatando exaustivamente o encontro, com a obsessividade com que nos ocupamos de algo que não conseguimos compreender, que foi traumático.

Associada a esta vivência está a proclamada ignorância dos protagonistas: o adolescente queixa-se de que seus pais não o entendem, ele por sua vez, não sabe “qual é a deles”, os pais alardeiam que não entendem mais nada (como se antes entendessem alguma coisa!). Eis a idéia de nada saber que caracteriza nossa relação com a adolescência . Para tanto teremos que considerar essa proclamada ignorância como constituinte do complexo que é a relação do adulto com o jovem.

Pais e adultos em geral pouco podem elaborar sobre adolescência: ou se portam como se fossem ainda adolescentes ou negam o fenômeno revelando esta incapacidade de compreender de que falávamos. Torna-se óbvio então pensar que a impossibilidade de saber sobre a adolescência advém da impossibilidade de saber sobre a sua adolescência!

A vivência adolescente é de difícil rememoração, as lembranças de fatos e feitos produzem um certo estranhamento: não são tão fragmentárias quanto as infantis, mas carecem da autenticidade destas. Uma lembrança infantil tem fortes resíduos visuais auditivos e olfativos, pode ser evocada com o preciosismo que faz de seus mínimos traços um tesouro incomparável, a lembrança da adolescência, embora mais precisa, é destituída desta dramaticidade, talvez por isso precisemos narrá-la com tanta insistência. As sobrevivências desta época são mais comuns, músicas, hábitos e amigos persistem ao longo de toda a vida, mas conseguem via de regra assumir sempre a mesma forma, tão invariáveis como um velho e bom sintoma.

Mas o que faria da adolescência algo de tão difícil assimilação psíquica? Sigmund Freud, que só desfez a cilada teórica da teoria do trauma em que se metera após o falecimento de seu pai, comenta que a morte do pai é o fato mais importante da vida de um homem(2). Ao estudar a adolescência constatamos que não é preciso esperar a morte real dos pais para que se opere algo desta ordem.

A operação própria da adolescência é a agonia e morte dos pais reais enquanto suporte do ideal. A desidealização dos pais, sua conseqüente queda da posição de amantes, amados e alicerces, deixa o sujeito frente aos seus pais reais, que obviamente ainda estão por ali, numa posição de estranhamento.

Vejamos o quadro desde os olhos do jovem: ele ainda é parte intrínseca da cena daquela família, partilha intimidades, cheiros, ruídos, que são seus, que são seu eu. Bruscamente aquilo tudo começa a soar, cheirar e parecer diferente. A súbita visão daquilo que antes era invisível na sua obviedade cria um sentimento de exterioridade. A intimidade não é mais dele, mas ele ainda é obrigado a freqüentá-la. O silêncio e o nojo são sinais do constrangimento. As distância físicas desapareceram, seus pais tem seu tamanho, ou são menores:olhos nos olhos destes, descobrem que são feitos de carne e osso. Descobrem-nos cheios dos caprichos próprios da neurose, que se amam com os limites do amor que substituiu a paixão, que sua sabedoria muitas vezes não foi suficiente para lhes solucionar a vida. Enfim, são pobres diabos atrapalhados.

Não seria difícil encontrar a explicação psicanalítica clássica, ainda válida, para explicar a necessidade da separação de pais e filhos após a maturidade sexual dos últimos, está em Freud de 1905, que nos diz: “A afeição infantil pelos pais é sem dúvida o mais importante, embora não o único, dos vestígios que, reavivados na puberdade, apontam o caminho para a escolha do objeto.”. Terceiro dos “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”(3), origem das diversas teorizações sobre a recidiva edípica que, aliada à maturidade sexual, torna a evitar-se uma condição necessária para driblar a eminência do incesto.

Mas escrever um trabalho tendo este como eixo nos encerraria numa dinâmica circular, é assim e pronto. Já sabemos que simplesmente revelar os desejos edípicos de nossos pacientes não os conduz a nenhum tipo de aplacamento de seus sofrimentos, é preciso inseri-los no contexto de uma história, no processo identificatório pelo qual ele veio a ser o que é, ou, se preferir, no desenlace de uma neurose tecida sobre um fantasma originário.

Temos então as figuras da desidealização de ambas as partes e da maturidade sexual num filho que agora grita aos quatro ventos a presença do amor, ambos fortes motivos para que pais e filhos adolescentes se afastem. O desencanto é mútuo, os corpos ardentes, o fantasma da separação ronda a relação, mas o divórcio longe de ser eminente realidade, é uma sombra. Na verdade o processo continua, o adolescente ainda não é adulto, os pais ainda não estão velhos, seguindo com o game: insert coins.

 

2.Os piores vaticínios

Algo precisa explicar o tom amargo e alarmista que invade os pais. Tomemos como exemplo o tão comentado filme “Kids”: afinal, que raios de loucura pode ter tomado a todos para que consideremos aquele um quadro tão representativo da adolescência contemporânea?

Façamos um paralelo com nossa reação a outros dois filmes: “Pulp Fiction” e “Assassinos por natureza”, para nos atermos a dois recentes representantes da apreensão ficcional da violência. Com certeza, podemos sair destes com uma vaga sensação de que nosso superego é frágil e o gozo obscuro, atraente e perigoso. Porém sabemos até onde vai a fantasia e não olharemos desconfiados para nossos amigos que nos acompanharam ao cinema ou para os nossos esposos ou esposas pensando encontrar ali um louco serial killer. Já ao assistir “Kids”, saímos pensando que aqueles bem poderiam ser filhos nossos, do nosso tempo. O filme fez o sucesso que fez, porque trabalhou muito bem um trecho da realidade que alicerça nossas fantasias a respeito da adolescência.

Boa parte dos que reconheceram a veracidade daquele quadro, certamente não constituem a porção humana que o vive. O filme responde muito bem ao tom com que os pais enviam um confuso filho a uma clínica de recuperação de drogados após encontrar uma “ponta de baseado” (resto de um cigarro de maconha) em seu quarto e depois tomam umas doses de Whisky para acalmar os nervos. Seguimos então com a questão, o que assusta tanto aos pais na adolescência dos filhos? O que cria a pregnância social aos piores vaticínios sobre os jovens contemporâneos?

Estes moços, pobres moços… vistos com alguma objetividade, a grande maioria pelo menos, resultam não ser nenhum tipo de monstro. Tanto hoje como ontem, é precisamente na juventude o momento originário de boa parte do mais original da produção cultural e da renovação dos costumes. Evidentemente que os anos lapidam um pensamento, mas a pedra bruta é arrancada da escuridão da montanha precisamente na adolescência!

3.O adolescente enquanto Unheimliche

Freud em seu texto sobre o Estranho(4) deu a esta expressão o estatuto de conceito analítico. A tradução é como de costume controversa: Inquietante estranheza, estranho, sinistro são as formas mais habituais de dar conta de um significante que de fato não tem nenhuma correspondência em português. Freud o arrola como uma das formas de retorno do recalcado, cuja especificidade é de que o resultado da operação de recalque dê ao sujeito a impressão de que o conteúdo, e ou o afeto correspondente, venham do exterior, quando na verdade vem de dentro. São aparições de fantasmas muito familiares mas vividos como distantes.

Vejamos como isso se dá: os pais não reconhecem naquele filho o fruto de seus melhores esforços, por seu lado, o adolescente não quer reconhecer-se no que tem de sobre-determinação paterna em cada poro. O desencontro no interior da família, a solidão deste período da vida são oriundos da vivência desta estranheza. Trata-se de algo que é o familiar tomado como exterior, como estranho, estrangeiro, totalmente alheio. E isso vale para ambas as partes envolvidas. Os pais sabem que sob essa nova roupagem oculta-se o filho, mas o pretexto dessa diferença autoriza o não reconhecimento. A perda da imagem de criança é o alicerce imaginário sobre o qual se apóia o estranhamento dos pais, que, desta forma, operam uma necessária separação de corpos. Sendo assim, longe de ser algo patológico, o estranhamento faz parte intrínseca do papel dos pais na adolescência dos filhos. É apenas um de seus mecanismos.

Vem se somar ao estranhamento que falamos ainda outra observação, a qual é uma interpretação já tradicional:os pais se espelham na nova imagem do filho crescido, mas o que vêem nesses corpos viçosos não são eles, eram eles, não são mais. Atrapalhados com o reencontro em seu filho do corpo da juventude, com as manifestações da paixão, com a lembrança daquele beijo interminável do primeiro amor, tão mais maravilhoso quanto mais pretérito, os pais suportam mal a diferença que se explicita entre o jovem e o adulto. O espelho agora, qual o retrato de Dorian Gray, revela aos pais suas verdadeiras faces. Subitamente envelhecido, o adulto grita seu descontentamento com o novo estado. O estranhamento com o filho é também o estranhamento com a própria imagem..

O estranhamento abre as portas para a agressividade. Pelo caminho daquilo que Freud chamava de narcisismo das pequenas diferenças. As diferenças são superestimadas para operar-se um distanciamento.

Um exemplo: as piadas de português não são outra coisa que a manifestação desse narcisismo das pequenas diferenças. O que se recalca nas piadas de português é a nossa origem lusitana, suportamos muito mal sermos filhos de Portugal. Eles são os otários, os bobos, os que não entendem nada. Isto é necessário para construir uma identidade negativa ao que temos de português, queiramos ou não. Infelizmente nem sempre se encontra uma forma tão lúdica para esconder a agressividade devido à pouca distância.

A psicanálise depois de Lacan re-situa a agressividade: ela sai do campo do pulsional, do inefável cadinho dos instintos de morte para o campo do narcisismo. A agressividade torna-se egóica, é para fundar um espaço próprio que se distribui bordoadas a direita e a esquerda. Não é o único caminho mas tanto quanto menos simbolicamente um sujeito se ache garantido tanto mais vai apelar para o tacape.

Portanto, não é a distância entre as gerações que pode trazer a agressão que temos visto se disseminar entre pais e filhos, pensamos que é justamente o contrário. As famílias modernas tendem a viver um “unitempo”, todos “são” da mesma geração, gostam das mesmas músicas, as roupas só se distinguem pelo tamanho, pais e filhos brigam pelo computador ou videogame. Como então situar uma diferença? Entre tapas e beijos um território se demarca…

4.Resistências à adolescência na psicanálise.

Podemos agora analizar a visão resistencial da adolescência também no interior da própria teoria psicanalítica. Aqui o estranhamento surge sob a forma duma mórbida litania sobre lutos e perdas do adolescente. Muito se falou sobre o luto pela infância perdida, pela perda do corpo infantil, pelos pais da infância, enfim, em boa parte da literatura psicanalítica, em particular a mais recente, o luto é a tônica das teorizações.

Há realmente uma perda, perda gradual, não exatamente abrupta, do lugar de objeto do amor dos pais. Ela se dá no momento do desmame, da aquisição da marcha, do controle esfincteriano, da entrada na escola, em suma, é um caminho cheio de estações das quais poderíamos considerar a da adolescência como mais uma. Porém, nessa linhagem de perdas, a criança ainda pertence aos pais. é preciso lembrar que quando chega a dolescência a infância acabou, o sujeito é parido subjetivamente da família: é expulso do corpo sintomático em cujo ventre se formou. Mas precisa continuar convivendo, ainda é um lactente simbólico. Enfim, podemos dizer que perdeu, mas também que ganhou um novo corpo, o mais belo que terá em toda sua vida, além disso, inaugura-se numa bem vinda distância da sintomatologia dos pais.

Seria então esse luto uma observação empírica ou trata-se de uma abordagem que coloca o acento sobre a figura da perda? Por que sublinhar a perda e não os ganhos? Estamos diante de um fenômeno que quando se perde é que se ganha. O rei morreu, viva o rei, mas nos dedicamos mais ao enterro do que à novidade.

Após a divulgação da existência da sexualidade perverso polimorfa infantil morreram todos os anjos. Mas apesar da psicanálise ter exterminado com o sonho de tola felicidade infantil, parece que entre as suas própias fileiras ainda existem saudosos. Ainda há quem acredite na “aurora de minha vida, na minha infância querida, que os anos não trazem mais”.

Só uma postura dessas pode justificar a ênfase na crise adolescente como resistência ao crescimento, resistência essa como sendo um apego ao infantil. Fica a idéia que na infância haveria um estado de plenitude posteriormente inatingível. Se por plenitude compreendermos a presença de um ente gigantesco que zele por nós, estamos certos de ser saudosos, mas não podemos esquecer que, como demonstram os sonhos e fantasias infantis, esse mesmo grande personagem persegue-nos com sua bocarra escancarada, disposto a satisfazer, com nosso desvalido ser, seu apetite insaciável.

Outra face da idealização da infância é maximizar seus efeitos supondo que só na infância o sujeito se subjetiva, se molda, se traumatiza. A adolescência não reservaria novidades, só a confirmação do que já estava dado numa subjetividade que já estaria pronta, mas encapsulada esperando desdobrar-se. Semelhante pensamento faria uma análise inútil, pois nada haveria a fazer.

Sabemos que a adolescência é ocasião de acontecimentos fundantes: nunca nos ocupamos tanto das origens quanto neste período tão denegatório. As elaborações da filiação, cerne do trabalho psíquico da adolescência, são reinaugurações do sujeito, algo como quando a história torna-se um belo e organizado museu ou finalmente encontra sua versão escrita. Em suma, é quando o sujeito põe sua história em questão, quando ele se vê histéricamente fora dela que pela primeira vez a narra e organiza. Este é um momento de tal fragilidade que a solidão deste período pode e deve ser minimizada, de forma a que este trabalho discursivo seja o mais completo possível. É curioso que acusemos os adolescentes de lacônicos e monossilábicos, aliás é inverídico. Em pocas épocas da vida derramam-se tantas palavras ao telefone, na agenda, nas longas noites insones. É com o adulto que ele não fala. Mas devemos nos perguntar, é porque não querem ou porque há algo que o adulto não tolera ouvir?

Semelhante apego ao cenário infantil, que marca toda nossa cultura, é o que habita o espírito das hordas de todas as idades que vão fazer filas na Disney. Celebramos o culto à infância tanto quanto fazemos do início da vida fonte de promessas que jamais se cumprem.

Poderíamos muito bem trabalhar a questão desde a vertente do que há de tão insuportável na vida adulta, para compreender o que nos faz tão tolerantes e compreensivos com os caprichos infantis e tão sensíveis às mais sutis variações do humor adolescente.

É francamente observável que o olhar crítico, fruto da nova distância daquele que torna-se um outro indivíduo, não mais parte integrante do ser dos pais, aponta às fragilidades dos adultos enquanto possíveis modelos identificatórios. Aqui caímos noutra grande questão: a da relação dos adultos enquanto pais com a tradição em que estão submersos, a qual, reconhecida ou não, constitui o substrato simbólico que os faz ser o que são.

Vamos tentar explicitar um pouco a nossa visão do caráter do laço que é subjacente à família contemporânea para tentar entender o que haveria de tão insuportável nas dúvidas que acometem o adolescente e que seu comportamento denota. Então, temos que o adolescente existe porque duvida e nós o detestamos porque ele faz perguntas que não sabemos responder.

5.O dever de ser órfãos.

Os filhos do tempo do individualismo tem o dever da liberdade de ser órfãos. Afirmação propositalmente paradoxal, na tentativa de articular dois binômios que constituem o cerne das contradições que nos marcam:

a) filho & órfão e b)o dever( que implica uma submissão) & liberdade. O primeiro é bem caracterizado pelo desejo dos pais de não influenciar no destino do filho, de não maculá-lo com a explicitação dos desejos parentais. Não se trata de que os pais ocultem o que querem para os filhos, trata-se de que eles não sabem mesmo o que seria um bom destino. Acometidos pelas incertezas próprias do trabalho de balanço, recalcam os desejos justamente num momento em que o filho lhes pergunta claramente “afinal, o que vocês querem de mim?”. Assim fazendo produzem o abandono ,não por descuido, mas por escolha. Talvez, pensam, ele possa escolher seu destino melhor que eu. Assim fazendo, jogam o filho no dever de ser órfão, de ser livre deles. Mas como diabos ser livre de quem espera tanto de nós?

Isto quer dizer que hoje devemos nos mostrar livres em nossas escolhas e que esta liberdade nos faz órfão de referenciais aos quais inclusive se opor, se for o caso. Ao filho inseguro de seu destino a família moderna propõe: “o importante é que sejas feliz no que escolheres”. O que importa é que o destino seja independente da origem. O ideal é o self made man . Obviamente isto é uma falácia, mas é talvez a mentira mais preciosa de nossos tempos e as mentiras dizem as verdades do ideal. Mentimos ser o que achamos que deveríamos ter sido. Associe-se isto ao fato de que devemos ser felizes, ou seja, responsabilize-se por tua escolha e graças a este desprendimento, a esta liberdade, terás satisfação garantida.

A própria família nuclear baseada na livre escolha amorosa traz já em seu cerne o seu próprio ponto de ruptura, pois se baseada na livre escolha, deve trabalhar no sentido de libertar a criança de si mesma. A criança deve ter sua história individual, independente das origens sociais e culturais de seus pais. O pai é a cada vez mais humana encarnação de um destino possível, não de um caminho a seguir, e é no sentido do preenchimento das lacunas deixadas pelos seus fracassos que o caminho do filho se orienta.

A psicanálise aprendeu a encontrar na fobia o indicador da presença de uma operação de construção de um lugar paterno ali onde ele fraqueja, por isso, associado à constatação de que na adolescência os pais se escondem, constatamos o que chamamos de “adolescentofobia”. Esta tem sua expressão no movimento tal qual o do pequeno Hans com seus cavalos, pelo qual os pais só conseguem ver o adolescente em todos os ambientes da casa, não importando onde ele esteja, ocorrendo o mesmo na rua, onde os pais vêem o seu jovem filho em cada rosto, em cada silhueta que passa pela rua, quando não promovem verdadeiras perseguições detetivescas, quer seja por motivos conscientes ou não. Assim, esta dialética de superação do pai, teria necessariamente que criar seu contraponto fóbico. Aquele ponto nodal onde encontramos a presença da castração do pai e sua superação embutidas em um mesmo monstro. Na “adolescentofobia”, tememos nos jovens o encontro do viço de seus insaciáveis corpos, imagem da potência, com o nojo com que olham os pais, deixando-os em uma posição de absoluta impotência.

Colocado o primeiro ponto de articulação, o paradoxo de pertencer a quem nos ordena a liberdade, queremos avançar mais um pouco neste mesmo viés para desvendar mais uma contradição da família nuclear. Queremos provar que não há paraíso perdido, que não há a saudosa eficiência da família nuclear, ou seja, uma época em que seu funcionamento fosse um berço seguro para nossa vacilante subjetividade.

A família nuclear, cerne da cultura do individualismo, carrega suas contradições desde sua própria origem. Nosso discurso queixoso relativo ao pai que tinha autoridade, aos rituais que marcavam as épocas da vida, à mãe que se ocupava do bem estar dos seus, sem sonhos de inserção fálica pessoal, só funciona como um contraponto para nos possibilitar tanto a queixa pela fraqueza de nosso pai atual, como pela inconsistência de nossos laços sociais e ainda ao desamparo em que nossa mãe nos deixou.

O discurso contemporâneo se caracteriza por essa postura queixosa, que tem na vertente eternamente culpada dos pais a sua melhor representação. Desta forma, todo o tempo dedicado aos filhos é sempre considerado insignificante relativo ao que deveriam destinar-lhes. Os pais hoje se julgam em profunda falta relativo aos pais que deveriam ser, e tudo o que fazem visa compensar os filhos pelos pais que eles “não têm”. Desta forma, ao se decretar marginais relativo a uma paternidade idealizada e irrealizável, escorregam do seu lugar deixando ali uma questão,costumeiramente administrada pela culpa. Alie isso ao voto narcísico de que o filho seja imaculado em sua perfeição, que os transcenda tanto em oportunidades como em facilidades. A operação resultante da culpa com o inchaço narcísico, gera um amor viscoso e paralisado.

Hannah Arendt, no livro que inspirou o título de nosso congresso (5), ensina que o próprio conceito de revoluções situado na origem dos grandes feitos da nossa civilização moderna,cria uma impossibilidade de legar a tradição. Visto a experiência ser de transformação, sempre com a marca do novo, do impar, da diferença radical com os princípios antes estabelecidos, fica colocada a questão de como é possível legar a um filho a contestação como herança? Como fundar uma tradição com base na transformação?

Assim, mais do que um conteúdo, podemos legar um estilo, o qual, tão etéreo, termina por se traduzir apenas em imagem, a contestação como herança produz um filho fashion, postura da novidade que melhor expressa o espírito revolucionário, renovador. A dificuldade própria de ter que viver na preservação de um estilo que esteja sempre clamando sua imparidade, é revelada pelos dilemas dos novos homens que vivem na constante denegação de sua pertença à massa do imaginário social reinante. Trocando em miúdos, gostamos de encontrar outros com o mesmo boné que nós estamos usando na rua, sentimos a sensação de que estamos fazendo a coisa certa, somos OK! Mas cuidado, convém usar o próprio boné de uma forma pessoal, que expresse nosso viés particular no contexto do geral. Tal pendência relativo às questões da imagem torna a existência bastante trabalhosa, passando muitas vezes a imagem de uma certa futilidade que aliás não é própria só dos adolescentes, mas de todos nós, habitantes dos estertores do século XX. Ocorre que as inseguranças adolescentes expressam como ninguém as “coisículas” de onde extraímos nossas trêmulas auto-imagens. Que bela caricatura de sua mãe é uma angustiada jovenzinha em frente ao espelho!

6. Para concluir

Bem, voltando à cena doméstica de que partimos. Os pais costumam ter duas saídas, a retrógrada e a moderninha: na primeira decretam seu permanente estado de horror, excluindo-se da cena; na segunda, retroagem-se à própria posição de adolescentes, sendo mais avant garde que os próprios, dando camisinhas a assustados púberes que conhecem tão bem seus corpos e os do sexo oposto como conhecemos a geografia da Sibéria.

Num ou noutro extremo, temos a impossibilidade de se manter no lugar propiciatório às identificações. Quer os pais considerem o filho algo monstruosamente diferente ou colocando-se enquanto semelhantes, o resultado é a solidão do adolescente. Quanto aos pais, que têm agora que aceitar ser os adultos de seu tempo, enfrentar a velhice ou morte de seus próprios pais como uma iminência, ficando também jogados em uma solidão muito parecida àquela que enfrentam seus filhos.

A solução, se assim podemos nos expressar, para pais e filhos, passa por um reatamento das pontes. Temos encontrado na psicanálise de adolescentes e nos encontros com seus pais, a necessidade de re-historicizar esses sujeitos, como se naquele momento devêssemos provar a uns e outros que o filho não foi trocado no berçário. Eles devem voltar a se reconhecer, pelo menos durante este período, num patamar quase racional, literário. Experimentar contar-se histórias do passado, já com aquela sensação de estar ficcionando um sujeito que se tem numa análise.

Ao par das lágrimas que sempre acompanham o crescimento, há na vida com o filho adolescente momentos de rara beleza, nos quais, por fugazes instantes, o filho olha os pais com cara de quem finalmente compreende suas razões. São os momentos em que os gritos dão lugar às lágrimas que dão lugar às palavras que dão lugar a esse novo olhar.

BIBLIOGRAFIA
(1) ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Familia. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981

(2) FREUD, Sigmund. Obras Completas volume IV, Interpretação dos Sonhos, pág. 32. Rio de Janeiro, Imago, 1987.

(3) FREUD, Sigmund. Obras Completas volume VII, Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade , pág. 215. Rio de Janeiro, Imago, 1987.

(4) FREUD, Sigmund. Obras Completas volume XVII,O Estranho , pág. 275. Rio de Janeiro, Imago, 1987.

(5) ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, Editora Perspectiva, 1992.

Publicado no livro “Adolescência: entre o passado e o futuro”. Porto Alegre: Artes e Ofícios Editora & Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 1997

11/07/97 |
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