Guardiã das gavetas existenciais
Existenciais sobre o livro Agora eu Era de Claudia Laitano
Sempre quis ser cronista, queria ter essa capacidade de pinçar um elemento aparentemente irrelevante do cotidiano e com ele interpretar o mundo. Este espaço, desde o qual aqui vos falo, transformou-me não nisso, mas numa micro-ensaísta, foi o que deu para fazer. Mas nas páginas da Zero Hora eu vi, não sem inveja (da branca), o nascimento duma cronista de verdade.
Lembro de certa crônica escrita pelo Cony nos dias do impeachment do presidente Collor. O jornal derramava urgência, empolgados pelo momento histórico, estávamos inebriados dum espírito cívico, determinados a julgar e punir as safadezas dos poderosos de plantão. Dissonante, ele dedicou seu espaço jornalístico a falar de suas cadelas Setter. Fiquei impactada pela sua liberdade de pensamento, não era um gesto de alienação, simplesmente alguém lembrou, sutilmente, que e a vida segue, cheia de grandes pequenos caprichos.
Claudia Laitano é capaz disso, mas é no exercício da memória que seu livro de crônicas Agora eu era (Ed. Record) revela-se encantador. Ela nos lembra que possuímos uma gaveta cheia de cacos históricos, bijuterias quebradas, fotos sem importância, coisas que se deixou para ler no dia de são nunca, que ela sabiamente chamou de almoxarifados existenciais. Os nossos ficam lá, juntando poeira à espera da faxina inclemente, que nos deixará entre saudosos e reflexivos, mas disso não faremos arte, ela sim.
Suas crônicas conectam-nos com um acervo coletivo de lembranças, que são velhas propagandas, programas de tevê, lugares, objetos e hábitos do passado recente. Mas, diferente daqueles livros de “mofolândia”, catálogos visuais da cultura pop de décadas passadas, as memórias evocadas por ela estão ao serviço de um questionamento inclemente, nada moralista. O bom humor e a leveza de estilo embalam a densidade de suas reflexões, não se engane, ela nos alfineta.
Recentemente, ela passou por uma grande dor, a morte de sua mãe. Na tristeza do velório me disse: perder a mãe é diferente. Só depois entendi. Não estou desmerecendo os pais, eles fazem uma falta imensurável, mas é de outra natureza. Mãe é o hard disk da nossa vida. É guardiã das memórias, das gavetas e almoxarifados que a gente pode nunca consultar, nem limpar, pode até nem querer lembrar, mas descansa sabendo que alguém armazena isso para nós. Perder a mãe é assistir ao incêndio de boa parte dos arquivos da nossa infância. Só me ocorre dizer, enquanto inútil consolo, que a Claudia, como cronista, é, nesse sentido, um pouco mãe para todos nós, seus leitores.