Hakuna matata! Ou a adolescência segundo Disney

Texto sobre a imagem da adolescência transmitida no filme Rei Leão

 Hakuna matata!  Para os não iniciados em Disney, estas são as palavras de ordem que definem a adolescência no filme O Rei Leão. 

A questão é saber porque um filme dirigido às crianças dedica tanto tempo em seu desenrolar à adolescência do leãozinho Simba. Boa parte do filme transcorre em um período entre a morte de seu pai e a ocupação de seu lugar como sucessor do trono, durante esse tempo ele se dedica a viver um eterno presente, sem memórias nem expectativas, enfim uma moratória da vida, que tem sido uma definição já clássica da adolescência.

 Na verdade,  todo filme infantil  é fonte de devaneios,  chamo também de devaneio esse brincar de ser o personagem e viver suas aventuras. Esse tipo de devaneio, estruturalmente falando, não difere em nada daquele sonho de sucesso amoroso ou profissional a que um adulto se entrega com olhar abobalhado no meio de uma tarefa qualquer, principalmente quando esse afazer o leva a enfrentar algum tipo de dificuldade, viver algum tipo de impotência, temer algum tipo de fracasso. É nesse preciso momento que o adulto aciona a tecla do ideal e antecipa o final feliz ou vence as dificuldades com a facilidade de um  eleito.

Mas o que vamos enfocar aqui é o fato destes devaneios se ocuparem do adolescer. Por isso, lanço a pergunta: será que a infância sabe da adolescência ? Este período está nos planos de vida de uma criança ou não passa de uma ponte suspensa sobre o abismo que se abre entre a infância e a idade adulta?

Vou tentar explicar a relevância que pode ter semelhante articulação a partir da casuística que me levou a ela: em primeiro lugar este filme, depois a óbvia constatação de que inúmeras obras dirigidas à infância procuram dar conta do crescer (pois esse é o ofício da infância, como já dizia Freud no texto sobre Leonardo). Nestas obras dirigidas à infância, devemos notar que todas as peripécias ocorrem antes do “casaram e viveram felizes para sempre”, o qual invariavelmente encerra o assunto. Nenhuma história termina com “e então Branca de Neve teve sete filinhos de verdade e engordou para sempre”.devemos notar que todas as peripécias ocorrem antes do “casaram e viveram felizes para sempre”, o qual invariavelmente encerra o assunto. Nenhuma história continua com “E então Branca de Neve teve sete filinhos de verdade, e engordou para sempre”.

Acompanhamos com a Branca de Neve e a Bela Adormecida a triste constatação de que, para acessar o amor,  uma jovem precisa travar uma luta literalmente letal com a bruxa da sua mãe, e não devemos esquecer, que ela está fadada a isso face ao dado inicial de que seu pai, morto, a  relegou a este destino.

Assim, abandonadas pelo pai, em posição de  rival frente a uma mãe que não se sente representada pela filha, as mocinhas precisam sobreviver na solidão da floresta onde serão finalmente encontradas por seu amor, mas, e aqui um detalhe importante, somente após algum tipo de morte e ressureição.

Temos então um certo desenrolar comum que veremos aparecer em muitas destas histórias, inclusive no Rei Leão:

1) após um amor paterno filial idílico, sobrevém a morte do pai 2) a disputa letal com um adulto não mais protetor, mas rival. 3) a morte, real ou suposta, com um posterior ressurgimento, quer por força de desencantamento ou não. 4) assume o lugar que o destino lhe reservava e as adversidades alheias à sua vontade o impediam, lugar este, aliás, sempre nobre.

Peço que o leitor, que aposto que é um adulto,  me perdoe submete-lo a tão edulcorado assunto, mas aposto que não existe um mísero adulto no mundo civilizado pela Coca-Cola e pelos estúdios Disney que não saiba pelo menos vagamente quem é Simba. Porém, aos desavisados explico um pouco da história: Simba é o príncipe dos leões, prepara-se para a sucessão do trono selvagem com a onipotência própria às crianças que se sabem amadas e idealizadas. Assim, “his magesty the baby lion” é, como qualquer filhote humano, um poço de promessas. É aí que entra um enredo com  tintas Sófocle-Shakespearianas e faz com que o pai-rei seja assassinado por seu próprio irmão. Este, após o crime, para se livrar do sucessor natural do trono que seria o príncipe, convence o pequeno Simba de que o acidente que motivou a morte do pai foi causado por ele e sugere que será culpabilizado por todos  pelo incidente. Na seqüência aconselha-o a fugir e o condena à morte sob as garras de um bando de hienas que lança em seu encalço. O filhote se salva, mas para os leões é dado como morto. Aqui chegamos à parte que nos interessa, pois Simba foge das “terras do rei”, que seriam agora suas, e se interna na floresta onde, na companhia de dois animais coletores, não caçadores como ele,  Pumbaa e Timão, incorpora  a  sua alegre filosofia de vida. 

Este novo período da vida  norteia-se pelo ensinamento de que “Hakuna matata” quer dizer uma vida longe dos dilemas do sexo e do trabalho. Esta expressão não é traduzida, é passada com o poder iniciático de intodução no grupo que tem a gíria adolescente, onde o que conta é o bom uso da palavra e não sua compreensão. O interessante é que este processo passa por uma necessária perda da memória, da identidade, e principalmente dos projetos.

O javali, Pumbaa, recebe-o dizendo “Você quase morreu” e, quando Simba se queixa de seu triste destino, que  não revela aos amigos qual seja, eles não mostram nenhum interesse por sua história e decretam “Você deve por o seu traseiro no passado” e acrescentam “Quando o mundo vira as costas para você, você vira as costas para o mundo”.

Perguntei a uma criança de seis anos  o que o Simba era no período que passou com Pumbaa e Timão: -como assim? -Ele não era mais criança, não é? -Claro que não, ele tinha juba! Mas ele era adulto? Insisto eu chatamente. -Não, ele era mocinho! -E o que é ser mocinho?  -Ora, do futuro a gente não pode saber! -Tens idéia do que faz um mocinho, já pode namorar?  E é neste momento que escuto a frase mais impactante: -E se eu morrer quando ainda for criança? responde a importunada criança, e continua: -Não, eu quero viver minha vida todinha, me protege!

O que temos aqui claramente, tanto nos clássicos Disney, narradores privilegiados de uma mitologia que é fundante de nossa subjetividade ocidental, quanto no caso do leãozinho e da fala da criança, é a figura do desamparo que sucede o fim da infância. Na porta de saída da infância encontra-se à espera, no mínimo, a adversidade, mas na verdade é a morte o porteiro que guarda esta entrada no mundo adulto. E vemos este mundo adulto anunciado com a paradisíaca promessa da felicidade eterna, lá vive-se feliz para sempre.

Trata-se de um paraíso construido com a nata dos melhores devaneios, ou seja, tecido do melhor do romance familiar tal qual descrito por Freud, onde reassumimos uma identidade nobre de que um malvado nos havia privado, ou somos guindados a ela pelas mãos do amor. Temos aqui a alternativa masculina e feminina do devaneio calcado no Romance Familiar.

Retomando, se há uma passagem entre a menina e a princesa, que já sabemos coalhada de perigos e visitada pela morte, seria ela  previsível pela criança, passível de elaboração, ou estaria fadada ao aqui-agora da atuação?

O motivo de me ocupar destes filmes infantis é que se eles tratam disso é porque ciceroneiam um processo de elaboração. E insisto, o desamparo destas figuras abandonadas à pior faceta da mãe pela omissão de um pai morto,  somente é o da infância,  na medida em que a adolescência é a melhor tradução da derrota da criança na tarefa de encarnar um suposto ideal parental. No decorrer da infância, a persistência dos sintomas, do sofrimento enlaçado da criança com seus pais, informa da condição de possibilidade de sucesso frente a esse ideal. A derrota total, a aparente descontextualização numa ausência de passado e futuro, esta é a caricatura da adolescência. Digo caricatura porque basta escutar um adolescente para saber que ele vive como esses viajantes do tempo, despencando nas mais diversas épocas quando ele próprio menos espera. Portanto esta vivência do “aqui-agora” é só uma das vivências desse período.

Seria um pouco limitado pensarmos que um período da vida incumbido da elaboração das origens, do processo de transformação dos pais em antepassados, seria apenas um hiato silente na vida, incapaz de ser previsto ou lembrado. Este silêncio é reservado aos momentos traumáticos que confrontam o sujeito com sua inexistência real ou psíquica, e sabemos, a partir de Freud, que nossa memória é constituida das lembranças daquilo que elaboramos. 

Sabemos que a adolescência é passível de análise, processos nos quais os últimos ecos da voz dos pais reais se entremesclam com um pensamento de um estilo tão urgente quanto de lenta operância. Cônscio da pouca produtividade desse turbilhão ( que é como um furacão que só agitasse as folhas das árvores ) o jovem se analgesia fugindo da solidão, nem que seja através de um fone de ouvido ou da eterna companhia de outro jovem cuja presença constante lhe realiza uma existência possível.

Porém, a lentidão de um processo não é novidade nenhuma para o analista, habituado a todos esses rituais do pensamento neurótico. No final da história, não será mais necessário calar esses últimos sussurros parentais que gritavam em seus ouvidos, sobreviverá a esta morte dos pais idealizados da infância, para, enfim, poder se perguntar por seu destino.

É precisamente disso que nos informa o filme. O ressurgimento de sua identidade se presentifica para Simba através da figura de um babuino que cumpria as funções de feiticeiro, tendo sido responsável pelo próprio ato de batismo do príncipe leão. Este aparece para lhe dizer que ele deve se lembrar de quem ele é filho, e possibilita um encontro com o fantasma, ou melhor, se traduzirmos, com a lembrança de seu finado pai. “Lembre-se quem você é” diz o feiticeiro, “Se eu voltar tenho que enfrentar o passado, o passado dói”, resiste Simba, -“Você pode fugir dele ou aprender com ele” arremata o macaco. Assim este trecho nos lembra que não só a morte é do pai, como o renascimento do filho para os estresses da vida passa por uma atualização do ato de batismo. Assim a filiação advém simbólica, mediante, como diriamos na velha e boa linguagem freudiana, o sepultamento do Complexo de Édipo.

Pensar que a criança nada saberia das tarefas que a esperam na adolescência seria ignorar que a infância é um processo de trabalho psíquico. Podemos ainda argumentar que o processo de elaboração na  infância só  é possível mediante a proibição do sexo. É porque lhe é vedado o exercício efetivo da sexualidade que a criança pode brincar das diversas posições sem o compromisso de ocupá-las, a infância tem na impotência sexual o seu garante. Como sabemos que isto é muito difícil de se manter na adolescência, nos perguntamos qual o registro psíquico possível de exercício sexual para aquele que ainda coteja o lugar de objeto de desejo de seus pais. O que seria o fantasma sexual de um adolescente?

É aqui que ganha importância a figura da morte do pai, que surge aqui como um elemento que garante a compatibilização da iniciação sexual (que no filme se traduz pelo encontro amoroso de Simba com sua já crescida companheira de brincadeiras Nala) com a condição de ser ainda tão filho. Para a criança a figura da morte a assusta, pois sabe que sua infância morre com o desaparecimento dos pais reais, e pouco sabe do que a espera, ou não pode ainda saber, como disse a criança que citei antes. Por outro lado a idéia de que sua iniciação sexual se dará num terreno neutro, a céu aberto, longe da sombra que lhe fazem os desejos parentais que a constituiram, é tranquilizadora, e é esta que penso ser a razão de um filme dirigido à infância enfocar a adolescência.

Assim a previsibilidade da adolescência para a infância tem como condição os termos que coloquei: a morte do pai, o período de ostracismo no qual a iniciação sexual ocorre, o ressurgimento de um novo sujeito rebatizado pelas próprias lembranças.  Enfim essa história adolescente é a última possibilidade que resta de ocupar um lugar idealizado e coloca o fruto dos melhores devaneios neuróticos no final da história. Afinal, quando o sujeito se finaliza num mísero adulto, não passa jamais de um  sócio francamente minoritário da grande empresa que seu ideal gerencia.

Publicado na Revista da APPOA, Adolescência, número 11, 1995

17/01/95 |
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3 Comentários
  1. Gustavo Siqueira permalink

    Esse filme tem um papel muito importante em minha vida, acho que foram poucos os dias da minha infância que não o assisti. Atualmente com 16 anos, e passando por todas essas turbulências da fase da adolescência citada no texto, consigo até interligar alguns fatos ocorrentes hoje que podem ter relação com os elementos psicológicos contidos no filme que passaram e passam despercebido na minha mente. Cada vez mais me interesso pela Psicologia, e espero um dia entender alguns mistérios da vida e mentalidade humana estudando-a. Parabéns ao site e aos autores, 🙂

    • Diana permalink

      se algum dia tiveres curiosidade, dedicamos no nosso último livro, psicanálise na terra do nunca, um longo capítulo a esse clássico da tua infância e da de tantos da tua geração. obrigado pelo comentário! espero que esses desejos de ir mais a fundo na psicologia prosperem!
      abraços
      diana

  2. Gustavo Siqueira permalink

    Diana, procurei seu livro, e fiquei com uma dúvida… Ele existe na versão física, “de papel” ? Fiquei interessado em adquiri-lo, mas ainda não tenho Ipad.
    Obrigado pela atenção. 🙂
    Abraços,’

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