Herodes são os outros…

Sobre o assassinato de Isabella Nardoni

Cachorro que late não morde. Usamos esse provérbio para dizer que aquele que expressa um desejo, ou uma ameaça, a princípio não a executará. Espichando ainda mais raciocínio, podemos inferir que aquilo que encontra algum tipo de expressão, quer seja em palavras, pensamentos, fantasias, ou sonhos, não precisará acontecer. Os psicanalistas apostam nesse exercício de enunciação para que não chegue a ocorrer algo grave. Quando o pior acontece, denominamos isso de passagem ao ato, ou seja, uma atitude tresloucada, expressando o que se sente, ou se quer dizer, de forma perigosa, espetacular ou violenta.

A maior parte dos crimes, especialmente aqueles que são ocasionados por um momento de descontrole, são desse tipo. Essa é uma das prováveis razões do assassinato da menina Isabella. Esse arremedo de explicação do crime, se tiver sido cometido pelo pai e pela madrasta, como está sendo sugerido pela investigação divulgada pela imprensa, não o torna justificável ou perdoável.

O problema é que quando alguém morde, todos os cachorros que latem ficam suspeitos de crime iminente. É isso que sentem todos aqueles que gritam pelas ruas, se amontoam em frente ao local do crime, tentam linchar os acusados, se desmancham chorando na TV. A imprensa e o público caem como urubus em cima do caso por que todos precisam deixar bem claro que jamais morderiam, por mais que já tenham rosnado ou pensado em latir para seus filhos.

E quem não pensou? Quem não desejou que eles tivessem botão de liga e desliga, que eles se desmaterializassem naquele dia em que estavam insuportáveis e nós tão cansados? Qual o casal de amantes que não lembrou saudoso o tempo em que eles não existiam? Qual o pai ou mãe que em alguma ocasião não teria desejado trocar o próprio filho por outro, aparentemente mais comportado ou bem sucedido? Quem nunca pensou que não ia ter condições de sustentar, educar, colocar limites, ensinar a se defender? Quem nunca ponderou a idéia de desistir, como se fosse possível, da empreitada em curso da paternidade?

Ser pai não anda fácil. Antes criavam-se muitos e uns davam certo, outros nem tanto. Hoje é um ou dois e nada pode dar errado, poucas balas pedem tiros certeiros. Pai e mãe são julgados pelos resultados: diga como são teus filhos e te direi quem és! Essa pressão, aliada ao tratamento de reis que têm os pequenos de hoje, faz muitos recuar. As taxas de natalidade baixam em países do primeiro mundo, o que sempre nos indica as tendências de por onde o futuro vai andar. Recente pesquisa apontou que 15% dos brasileiros que tiveram filhos, se pudessem voltariam atrás.

Apesar disso o mito segue igual: ser pai é ultra bom, insinua-se que é a única atitude madura a tomar, e não deve haver dúvidas de que será paixão à primeira vista, e você vai amar seus filhos incondicionalmente. Se for mulher então nem se fala: não se é “verdadeiramente feminina” sem filhos. Abortar é crime! Falar de aborto mexe com o fundamento de todo esse edifício de crenças.

Em primeiro lugar cabe perguntar: por que esse discurso social tão forte, cercando a maternidade e a paternidade de certezas que elas nunca têm? Impossível saber se é a melhor coisa a fazer, se é a atitude mais nobre a se tomar, e se existem garantias de que o amor vai conduzir as coisas para o bom caminho.

Açodados por tanto romantismo, muitos embarcam nessa viagem só de ida sem estarem preparados. São ainda demasiado filhos para tornarem-se pais. Quando caem na real alguns superam, e fazem disso uma razão a mais para viver. Outros deprimem e resignam-se, fazem do seu filho um castigo e socializam essa sina com todos em volta. E há aqueles que são incuravelmente frágeis, imaturos e ou narcisistas para suportar esse encargo recebido. Pois não há como dourar a pílula, é um fardo vitalício, por mais que consigamos extrair disso experiências interessantes, desafios instigantes, muito afeto e até aventuras! Mesmo quando é bom, é uma responsabilidade e uma trabalheira assustadora. Não admira que existam aqueles que tentem evitá-la ou postergá-la.

Ter um filho é assinar um contrato imenso, escritos em letras ilegíveis, em palavrório incompreensível, do tipo que se a gente lesse jamais teria coragem de encarar. Claro que vamos amadurecendo com a experiência, qualificando-nos a posteriori, de tal modo em que ficamos prontos para criar o primeiro filho só após ter tido o segundo, para administrar o conflito entre os dois primeiros, só quando eles já resolveram isso por conta, e se um terceiro houver, já estaremos anestesiados, nem lembraremos das questões anteriores. Portanto, a sensação de impotência é intrínseca à tarefa.

Além disso, há outra contradição inerente à parentalidade: como é que ela é fruto de um amor, sua encarnação, na mesma medida em que se torna seu maior obstáculo? Depois de iniciada, um homem e uma mulher precisarão conhecer-se novamente e re-pactuar a relação. Nem sempre um amado é o pai que ela queria para os filhos, nem sempre ele gostaria de compartilhar o leito com uma mulher que é mãe. Muitos problemas ocorrem porque a criança é incompatível com o amor do casal que a gerou. E há um agravante quando ela representa um resto de amor antigo, do tipo que sempre deixas pendências das quais o filho restante é uma triste lembrança. E quando o ciúme do novo consorte não suporta esse resto ambulante?

Ainda, um filho pode ser fruto de um deslize, um aborto que não se teve coragem de fazer, pode ser uma tentativa de colocar alguém na casa dos próprios pais para que ocupe nosso lugar e estes nos deixem partir. Neste caso, e se a criatura não se resignar a esse papel de irmão de mentirinha e insistir em fazer-nos pais?

Para todos esses casos e tantos outros, a fantasia providencia soluções como as do pai e da madrasta de João e Maria: levar as crianças incômodas para a floresta e esquecê-las lá a mercê das feras. O problema é quando as pessoas, curtas de fantasia e de capacidade de escutar suas ruminações, seus rosnados interiores, passam ao ato: matam, maltratam, abandonam. Aí acabou a brincadeira, é preciso exorcizar, lavar as mãos, latir e latir, para que ninguém pense jamais que nós poderíamos um dia também chegar a morder.

Publicado na Zero Hora, caderno de cultura em 26 de abril de 2008.

26/04/08 |
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