Homens-livro
Sobre Farenheit 451, a propósito da morte de Ray Bradbury
“Fahrenheit 451”, o clássico de Ray Bradbury, escrito em 1953 está acima da costumeira disputa sobre a qualidade do original e da adaptação: o filme homônimo de François Truffaut, de 1966, também é uma obra prima. Essa história me toca em particular, pois deu forma literária à subjetividade do mundo em que nasci. Um tempo é melhor retratado por seus temores e esperanças do que pela realidade, são as fantasias que desvelam esses bastidores, a subjetividade dos fatos. Nesse sentido, a literatura é fonte fidedigna de pesquisa histórica.
A Guerra Fria, assim como o modo de vida do pós-guerra, são metaforicamente retratados no livro como se fossem um futuro distante. Se hoje dizemos que os jovens são parcos de esperanças, isso certamente deve tributo ao tratamento que as gerações anteriores deram às utopias, moradas das expectativas e dos sonhos coletivos. Foi uma época triste, onde anseios de um mundo melhor encontraram no totalitarismo seu destino trágico.
A derrota bélica e política do nazismo não foi o fim, nem a única expressão, da determinação de transformar o estado em um deus, que, como tal, não devia explicações a ninguém. Havia um empenho global, e nisso o estalinismo foi certeiro, em fazer da alienação do homem comum uma regra. Seja qual for o tipo de governo que o século passado concebeu, mais à esquerda ou direita, as coisas importantes costumavam acontecer além da alçada do cidadão. Este que ficasse quieto, sua opinião era menos que bem vinda. Nas ditaduras o pensamento é cerceado, enquanto que nas democracias indignas do seu nome a astenia política é incentivada. Hoje, num mundo onde a liberdade conquistou muitos espaços, os regimes totalitários sobrevivem, prova de que há algo na condição humana que ainda anseia por esse modo de vida. É tão mais fácil não pensar…
Acabamos de perder Ray Bradbury, aos 91 anos, o autor dessa que é uma das mais belas fantasia distópicas, metáfora genial do ocaso da esperança. Mas, longe de ser um pessimista, deixou-nos, com “Farenheit 451”, uma nota para nunca ser esquecida: a ficção contém os sonhos mais preciosos, a riqueza e complexidade que nos tornam potencialmente revolucionários. Melhor que isso, mesmo quando o ambiente é adverso há homens dispostos a dar a vida em defesa da arte, das boas histórias. Quando tudo nos é retirado, percebemos que na beleza do encadeamento das palavras, na genialidade de uma trama, resiste nossa essência. Enquanto ela existir, sobreviveremos.
A literatura sempre foi considerada perigosa para os regimes totalitários, porque em seu interior os homens se compreendem melhor, tornam-se mais sábios, críticos e corajosos. Quanto mais escrevermos e lermos, mais nos pareceremos com uma civilização e menos com uma boiada. Isso vale para todas es formas da arte.
Bradbury projetou, para um futuro não muito distante, uma sociedade alienada, onde a população idiotizada era mantida distante de qualquer coisa que pudesse gerar angústias, dúvidas ou tristezas. Uma sociedade de semi-analfabetos, alimentados cotidianamente pela ilusão de participar de uma programação televisiva simplória e realista. Contentavam-se com metas medíocres, como a aquisição de objetos da moda, o aumento da capacidade de consumo, o cuidado com a auto-imagem. Também se dedicavam à vida social, baseada em conversas fúteis, principalmente sobre TV. Para garantir um estado de espírito compatível com essa rotina bovina tomavam remédios regularmente. Sentimentos e emoções eram proibidos, nenhuma manifestação artística era suportável. Os livros, remanescentes clandestinos de um passado recente, quando ainda era permitido viver intensamente dores, amores e desejos, eram caçados e queimados. Farenheit 451 é a temperatura na qual eles entram em combustão.
Qualquer evocação da nossa sociedade vinda da descrição anterior não é mera coincidência. Detalhe: nesse quadro montado pelo autor havia uma ditadura que submetia a população a horizontes tão estreitos. Bondoso da sua parte, pois já devia saber que entramos na fila dos pobres de espírito alegre e espontaneamente, sem necessidade de ser subjugados para tanto.
Os revolucionários de Bradbury não são guerrilheiros ou resistentes no sentido clássico, eles apenas defendem a existência da vida interior representada pela leitura. Trata-se de um grupo rebelde de homens no exílio, na clandestinidade, que se empenha na sobrevivência do acervo literário da humanidade. Eles decoram obras literárias e se incumbem de contá-las e preservá-las. Cada um torna-se um homem-livro. Ao deserto de referências simbólicas eles contrapõem seu apego à leitura. É interessante que a escolha da obra é feita por cada revolucionário, ele passa a ser esse livro, será identificado com ele, atenderá por seu nome, fará das palavras dele as suas. Existe melhor representação do tipo de relação que temos com nossas histórias prediletas?
Porque esse valor todo dado aos livros? Ler pode e deve ser aprazível, não necessariamente nos faz felizes, mas certamente porque nos enriquece, nos traduz. A fruição solitária e portátil de um livro não requer instalações, nem equipamentos. Basta a imaginação de outro ser humano, escrita no código de uma língua que conheçamos bem, e a viagem está garantida. Naquela sociedade a leitura foi banida porque faz dos cidadãos seres pensantes.Todo aquele que lê complica as coisas, no bom sentido. Na resistência imaginada por Bradbury, cada indivíduo preserva um pedacinho do acervo cultural da humanidade para fazer diferença no futuro.
Nessa história, há uma contraposição quase caricatural entre cultura e barbárie que é verdadeira e profética. Para nossa sociedade hipocondríaca, vidiota, consumista e narcisista, mais livros fariam diferença. Talvez quanto mais homens-livro houvesse, menos homens-bomba seriam necessários. E você, se pudesse salvar um livro da destruição, já pensou qual seria?