Homens na cozinha

Sobre o livro Histórias de Cama e Mesa, de Pinheiro Machado

Homem na cozinha é chef ou gourmet, mulher é cozinheira. Certo? Errado.

Quem pensa assim não conheceu minha vó. Ela passava o dia domando uma carne para transformar um músculo em algo que derretia na boca.Tarefa concluída, ficava à mesa totalmente enlevada, alheia a outros acontecimentos que não a trajetória dos talheres e o movimento das travessas para os pratos. O que eles descobriram foi esta forma de prazer: produzir uma satisfação oral nos outros.

Em seu livro “Histórias de Cama & Mesa”(L&PM) o escritor e apresentador de programas culinários Anonymus Gourmet (pseudônimo do advogado J. A. Pinheiro Machado) descreve duas formas de desprezo pelo que se ingere: a anorexia e o fast food. Abster-se da comida ou enfiá-la para dentro como um carro que abastece (boa metáfora do autor) são formas infantis de comer, assim como a voracidade e o regurgito dos bebês. São uma espécie de diálogo amoroso com a nutridora, já que todo alimento será visto como uma extensão dos seus seios. Já o preparo demorado e criativo de um prato,  que será consumido por pessoas cuja satisfação nos interessa, está na contramão deste funcionamento primitivo. Gourmets raramente são obesos, comer muito é um ato de desespero, não um prazer, é o processo de colocar compulsivamente grandes quantidades para dentro na tentativa de fazer valer este vínculo primordial.

Os homens na cozinha são aqueles que não a tomam como tabu do corpo materno, misteriosa, desejada e proibida a ponto de ser tratada com desprezo e distância, são os que se arriscam pelos territórios femininos. Associa-se a atividade ao masculino e a passividade ao feminino, mas à mesa sempre foi ao contrário, por isso a tradição de fisgar um homem pelo estômago. Relativo à alimentação, as posições tradicionalmente se invertem, ficando as mulheres com ativa e os homens com a passiva. Cozinhar é fazer ativamente o que sofríamos passivamente, quando tínhamos que ficar abrindo a boca para a colher “aviãozinho” que estava sempre querendo pousar.

Ao mesmo tempo, as mulheres também viraram a própria mesa, recusando-se à relação servil com as panelas. Os homens cozinheiros são muitas vezes companheiros de mulheres que abandonaram esta atividade em prol de territórios desafiantes. Elas também foram experimentar a reserva de mercado deles, ousando rivalizar com o próprio pai no campo do trabalho e do estudo. É um festival de identificações cruzadas, onde as mulheres vencem no mundo e os homens no lar. Depois disso, nada será como antes. Ainda bem.

29/10/03 |
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