Ilda furacão

E de estupros

Justiça com as próprias saias

Estuprar uma mulher é assassinar seus mistérios, ela é uma sofisticada trama existencial, mas o estuprador só vê vagina, buraco onde impor sua protuberância exigente. Um casal muito bem pode brincar com performances selvagens ou de dominação em sua intimidade, mas ninguém está sendo reduzido à condição de coisa, trata-se apenas de uma fantasia compartilhada. O estuprador pratica um sexo cruel, menos por ser violento, mais por ser despersonalizante. A mulher violentada pode ser Maria, Roberta ou Clarice, tanto faz, é o buraco da vez.

As Justiceiras do Capivari existem porque tiveram que viver num lugar que reúne o pior do interior com o pior da cidade, disso nasceu um feminismo rústico como seu entorno, mas nem por isso menos contemporâneo e feminino.

É atual porque elas fazem a hora, não esperam acontecer, não contam com autoridades, nem homens da família que se incumbam de sua defesa. Não sabemos se estes é que foram tão omissos que elas cansaram de sofrer, ou se elas é que decidiram não pagar para ver. Não há como discernir se as mulheres são fortes porque os homens são fracos ou se eles foram abrindo mão de funções que estas deixaram de lhes atribuir. A novidade está na vingança conduzida pelas mulheres, não se trata mais de um pai, marido ou irmão exigindo retaliação pela sua honra ferida. Mulheres como Ilda acreditam que a integridade e respeitabilidade de uma mulher são atributos seus, não de seu homem e isto ultrapassa os limites geográficos do Capivari. Uma mulher pode até ter um pai protetor, um marido dedicado, mas estará só quando o assunto for a defesa de sua honra. Por exemplo, quanto aos assédios sexuais no trabalho, ninguém espera que seu pai ou marido vão até o escritório dar uma surra num chefe inconveniente. Da mesma forma, a decisão sobre quão longe irá na intimidade com determinado homem será uma decisão solitária.

É feminino porque suas personagens são complexas e elas blefam. Ilda e suas seguidoras não estão querendo bancar as mulheres-macho, elas estão apenas propondo um movimento que tenha o poder de intimidar os agressores. A dona de casa Ilda Prado e a justiceira “Ilda Furacão” são duas faces da mesma, pois a mulher freqüentemente experimenta algum tipo de bifurcação, só muda o tema: entre a prostituta e a beata, a menina e a mulher, a mãe e a amante, a profissional e a rainha do lar. Tratando-se de mulheres, há sempre outro lado, algo que constitui seu enigma, que a torna difícil de catalogar. Esta sofisticação de sua imagem faz parte do seu jogo.

Despertar desejos está no roteiro de ser mulher, pode ser algo assumido ou apenas fantasiado, mas ela oscilará entre esta vontade de ser amada e a de ser muito mais que isto, outra coisa que não um mero objeto de desejo. Quanto ao blefe, não é um privilégio do seu sexo, mas é um grande amigo da mulher. Blefar é feminino porque significa convencer o outro pela aparência, é fazer acreditar na fantasia que se propõe. As Justiceiras aprenderam a usar este velho expediente das artimanhas de sedução feminina, agora para outro fim: meter medo. Afinal, tantas mulheres fingiram prazer, fingiram amar, porque não saberiam agora fingir matar? Mas as Justiceiras advertem, fantasia é coisa séria, por isso se dedicam à suas indumentárias de cangaceiras e às performances espetaculares do bando, assim angariarão o respeito que precisam. Afinal, como dizem, fantasia não é mentira, é uma verdade que esqueceu de acontecer.

PS: Um conselho de psicanalista para estas corajosas mulheres. Já que é blefe, seria mais efetivo ameaçar com a castração. Um homem prefere a morte a sobreviver sem seu atributo viril. O estuprador é um pênis ambulante, por isso: cortem-lhe a cabeça.

Publicado na Revista TPM, como parte da reportagem sobre a justiceira Ilda do Prado, organizadora de um grupo de mulheres para a defesa contra a reincidência de estupros na Baixada Fluminenese, Ilda foi assassinada um ano após a publicação dessa reportagem “Ilda Furacão” de autoria de Renata Leão
18/07/03 |
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