Imposturas
É mais fácil falar do que não vivemos, os verdadeiros protagonistas da história são pouco eloquentes.
Rachel Dolezal, dirigente da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor preferia ser considerada negra, em vez de afrodescendente. Essa precisão linguística só chamou a atenção depois dela ter sido denunciada como “falsa negra” pela própria família de origem europeia.
Tania Head, famosa sobrevivente do 11 de setembro não existe. Alegava ter fugido da torre sul enquanto seu noivo David morria na torre norte. David tampouco existia. A verdadeira nem estava em Nova York no dia da tragédia.
Binjamin Wilkomirski escreveu Fragmentos, livro muito premiado e traduzido em várias línguas, narrando sua experiência de criança judia nos guetos da Polônia e nos campos de extermínio. O autor era um suíço que nunca saiu seu país durante a infância. No auge do seu sucesso, a BBC filmou o encontro dele com uma mulher que teria sido sua parceira de infortúnios. Apesar do evento meloso, ela era na verdade uma americana que tampouco esteve nos lugares onde teria sido supliciada.
Os relatos falsos são mais dramáticos e explícitos do que os dos verdadeiros sobreviventes. Basta observar a elegância enxuta das memórias de Primo Levi, por exemplo. O problema é que esses mitômanos, mentirosos por delírio ou mau-caratismo, desvirtuam o importante depoimento dos verdadeiros protagonistas da história. Aliás, pela minha experiência, estes últimos não costumam ser muito eloquentes.
Quem viveu episódios traumáticos guarda em relação a eles uma reserva cheia de dor, auto-recriminações e duros questionamentos sobre a condição humana. É por isso que minha tia-avó respondeu, quando a questionei na infância, que o número tatuado em seu braço, resto indelével do campo de concentração, era “um telefone que ela não podia esquecer”. Nem mais uma palavra. Nunca mais.
A presença de uma falsa afrodescendente nesse grupo de impostores depõe do caráter igualmente traumático da escravidão, cuja memória se atualiza na desigualdade racial que insiste em sobreviver. Essas falsas vítimas, que assumem uma identidade marcada pelo sofrimento alheio e lhes emprestam uma narrativa fantasiosa, são porta-vozes dos sentimentos de uma maioria culpada pelos feitos de seus antepassados. É por isso que seus embustes têm sucesso.
É inacreditável quão longe chegamos em termos de frieza, de crueldade. E se fossemos nós nesses momentos, teria sido nobre ou covarde nossa posição? Depois da escravidão, extermínios e guerras, nossa história é uma ferida aberta. A mentira das falsas vítimas, assim como os discursos dos fascistas e racistas que negam a legitimidade dos fatos, depõe da dificuldade de lidar com ela. O passado nos questiona e o presente ainda pede que nos posicionemos. É hoje, não ontem, que podemos mostrar de que fibra somos constituídos.