Inconsciente cantor
sobre as músicas que não saem da nossa cabeça
Sem descanso aquela música insistia. Repetir o mesmo estribilho perde a graça, torna-se compulsão, castigo. Em momentos de solidão a voz escapava, mas em geral meu cérebro cantava para dentro: “Que tristeza que nóis sentia/ Cada táuba que caía/ Dúia no coração/ Mato Grosso quis gritá/ Mas em cima eu falei: Os homis tá cá razão. Nóis arranja outro lugar.” Vinha na versão da Elis para a música de Adoniran Barbosa. “Saudosa Maloca” é a estrela dessa linda parceria, mas aquilo era mais do que gosto musical. Quando uma letra de música cola, ela persistirá até que sua mensagem seja escutada. São textos embutidos, cartas cifradas enviadas pelo nosso inconsciente, que costumam ser ignorados. Com o tempo, a frase esquece de tentar, desiste ou é substituída por outra.
Subitamente, cantarolando baixinho num cômodo vazio da minha casa que está passando por uma reforma, entendi aquelas palavras: algo do meu mundo havia sido desmantelado e doía no coração. O quarto em questão era ocupado pela minha filha mais velha que saiu de casa. Aproveitamos essa mudança para ampliar nosso quarto, o que só podia me deixar feliz. Mas o que havia se desmantelado com a independência dela era um lugar simbólico: ficaram abaladas as estruturas da casa da infância, aquela habitada por adultos que são acima de tudo pais. Mesmo que os vínculos com ele permaneçam afetivos e íntimos, a saída de um filho transforma-nos.
No começo da parentalidade o eixo da vida dos pais desloca-se, abandona o próprio centro: inclina-se para o filho, como um adulto que se abaixa para melhor escutar as palavras da criança. É mais fácil viver num sacerdócio dedicado ao outro do que encarar-se. Ver-se entregue a um novo tipo de solidão instiga a preenchê-la, interrogando os próprios desejos. Mas a vida já não é pura promessa, sofremos as conseqüências de muitas escolhas e, por melhores que tenham sido, contabilizam-se perdas e danos. Além disso, esse balanço involuntário costuma ocorrer quando a luta contra o tempo se acirra.
Gritar não adianta, o filho está com a razão, nós arranja outro lugar. Cabe aos pais a resignação, mas também a guarda das memórias dos dias felizes vividos entre as crianças. Depois que todos os filhos partem, os pais devem se incumbir da manutenção de um cardápio tradicional aos domingos, da conservação do cheiro da casa que eles reencontram ao entrar, da custódia dos causos e piadas internas de cada família. Vamos transformando-nos em curadores da história alheia quando ainda temos parte da nossa para fazer. Captei a mensagem meu inconsciente cantor: é fácil dizer que os filhos são do mundo, difícil é lidar com a saudade que sua infância nos deixa.
Muito interessante! Um ninho vazio precisa mesmo ser transformado. A música que me vem à cabeça agora, não é tão bonita quanto a Saudosa Maloca, mas tem sentido: Vai com jeito, vai, senão um dia a casa cai! Abraços
Inspirado no seu Post, resolvi escrever o outro lado da historia. Estou fazendo 20 anos hoje e nada mais faz tanto sentido quanto tudo isso. 😉
Obs: Espero não me arrepender por está nota….
Antigamente as mulheres precisavam casar para sair de casa e levarem uma vida desassociada dos seus pais, assim cortando o cordão umbilical mais poderoso que é a moradia. Hoje não é tão normal o casamento cedo, e convenhamos que é mau visto aquele que se casa quando jovem.
Mas é natural o incomodo que sentimos quando estamos morando em uma casa que por teoria não é nossa, somos obrigados a cuidar dela, assim começa as brigas domesticas por espaço, visto que o filho adulto precisa de um espaço para se sentir como tal, sabemos que para as nossas mães continuamos sendo um bebê, deparamos com duas realidades completamente diferentes que ocorre com a mesma pessoa, a onde em casa é filho com responsabilidades domesticas, em uma casa que não mais é sua, mas sim emprestada até o momento de estar financeiramente disposto a sair dela; por outro lado, um adulto que trabalha, para se sentir como um, estuda para se tornar um profissional capacitado.
Mas o ponto fundamental é: hoje nos sentimos obrigados a ter um emprego para não sermos mais só o filho, mas ser promovidos ao adulto ocupado. É o adulto ocupado, cansado, que tem a desculpa do trabalho para não ocupar o presente lugar do filho vagabundo que não faz nada da vida, o nosso fantasma que nos persegue a todo o momento e nos da o impulso para trabalhar estudar, e tentar encontrar em si o real motivo de tudo isso.
Em prática tudo isso é deixado de lado, para tentar acreditar em um motivo bonito para o nosso crescimento. Em inconsciente temos motivos muito piores para fazer tudo isso. Em sonhos esqueça tudo aquilo que eu falei pois somos pessoas maravilhosas que estamos virando adultos saudaveis e amáveis.
lucia querida!
em primeiro lugar, feliz aniversário!
em segundo, só concordar contigo, que a vida é um parto que nunca termina de vez!
abraços
diana corso
Que lindo texto. Os filhos crescidos podem partir para sua própria vida, mas a referência está ali, naquele núcleo. Eu, como mãe dedicada, sempre recorro aos meus pais. Eles me aconselham e me recebem de braços abertos. Tudo o que eles sempre me falaram faz muito mais sentido agora. Nunca tiveram tanta razão. E eles souberam transformar a solidão em união. A casa continua a ser feliz, com avós, netos, filhos, pais e mães.
é minha esperança poder construir esse espaço de retorno para minha prole, uma arte para poucos, sorte tua tê-la!
abraços
diana
Que palavras maravilhosas. Estou ainda em um momento bastante distante deste ponto (pelo menos assim gosto de pensar, já que minha mais velha tem 9) mas esta é uma questão constante para mim. Repudio veementemente a ideia que meus filhos cresçam, que vão para o mundo como eu e todos os que me antecederam e que me sucederão. Mal começo a me acostumar com este deslocamento, em que deixamos de ser o centro de nossas vidas para deixa-lo a disposição destes pequenos outros que nos habitam e encantam, que viram nossas vidas e casas de cabeça para baixo. Mas é isso aí. Há de nos restar os almoços de domingo, e não é pouco.