Infância de Chumbo

Sobre os 40 anos do golpe militar

No aniversário de 40 anos do golpe militar, meu maior desejo seria crer nas palavras do presidente argentino. Em recentemente inauguração de um museu, dedicado à memória da tortura, ele prometeu que a ditadura e sua máquina mortífera nunca mais se repetiriam. Por aqui, se houve esse tipo de promessa, ela ficou abafada pelo tom cordial da nossa abertura política, que ainda perdura. A memória que gostaria de resgatar, não vale um museu, é a do cotidiano da geração que cresceu sob as seqüelas do golpe, a minha.

Sou nascida em 1960, virei gente na mesma época que este país entrava em estado de sítio, onde permaneceria até o fim da minha adolescência. Para minha geração, esta era a única forma de sociedade que conhecíamos, parecia natural. Não se falava de política… mas quem estava interessado? Os esquerdistas eram um perigo…mas, como foram sendo varridos da sociedade, eles soavam como uma ficção (ou uma infecção) distante. Jackson Five cantava, dançávamos Hustle, éramos “70 milhões em ação, pra frente Brasil, salve a seleção” e rezávamos para nascer americanos na próxima encarnação. Pertenço a uma família sem nenhuma tradição reacionária, ao contrário, mas o medo morava conosco e até na intimidade se sussurrava. Éramos uma sociedade de Elóis, gente-gado inventada por H.G.Wells em “A Máquina do Tempo”: reinavam a tranqüilidade e segurança bovinas. Do matadouro, nem palavra.Todas as pessoas que me rodeavam pareciam estar bastante cômodas: o pai saia para trabalhar e nos aniversários tinha reunião dançante e canudinhos recheados de salada de batata. A ditadura foi a época áurea para uma classe média murrinha e medíocre. Gente que se achava de bem, mas se comportou como os alemães, quando ignoraram os campos de extermínio nazistas construídos embaixo dos seus narizes. Aqui foram ceifadas muitíssimas menos almas do que na guerra e mesmo do que na Argentina. A grande vítima foi a liberdade de expressão, a ameaça de extinção foi da inteligência.

A adolescência foi nos trazendo alguma lucidez. Ao final da década de 70, com a ajuda de um punhado de corajosos, minha geração acordou. Não toda, mas em número suficiente para criar fatos e um clima que auxiliaram na abertura. Mas, por estes dias em que tanto tem se recordado, gostaria de dedicar minha anti-homenagem à maioria silenciosa e conivente em cujo seio cresci. Foi triste, sufocante e não quero que  se repita. Cumprir a promessa que o presidente argentino fez ao seu povo está na mão de todos nós. Não foram apenas os militares que marcharam sobre os direitos civis, foram as senhoras e as famílias que saíram às ruas, em populosas marchas defendendo a Tradição, Família e Propriedade. A ditadura foi feita de gente como a gente.

07/04/04 |
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3 Comentários
  1. diana permalink

    Procedente o teu texto. Mais ainda quando nós, que amargamos esse período, vemos alguns irem às ruas pedir a volta dele, a intervenção militar. Não satisfeitos com a democracia conquistada com sangue e suor, querem novamente a ignorância, o silêncio, a pseudo “segurança” de ter uma ditadura… Meu único consolo é que, como são em número relativamente pequeno, ainda caibam nos consultórios psiquiátricos para tratamento. Abç

  2. cdalligna permalink

    brilhante!

  3. Elisabeth Aumond permalink

    Sei bem do que falas.Vivi em minha famíliaeste sentimento de medo e isolamento.Pensavamos.Ousavamos pensar diferente de conhecidos,parentes,vizinhos.Conviviamos com o cinismo de pessoas de bem que faziam de conta que nada acontecia…Esta atitude continua a solta por aí.Nestas manifestações facistas dos ultimos dias e dos meios de comunicação com seu discurso enganador…Difícil manter a fé…mas vamos tentando.

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