Inimigo oculto
Sobre baratas, políticos e esperança
Tudo começa quando a incauta dona da casa entra na cozinha. Subitamente, ela percebe um movimento sutil, uma sombra, um ruidinho… É o suficiente. Todos seus sentidos entram em alerta, as pupilas se dilatam, o suor brota. Se houver um salvador disponível, o grito já se perfila na garganta, pronto para disparar. A caçada começa, mas a caçadora treme frente à minúscula rival, pode até derrotá-la, mas seu mundo perdeu a segurança, está maculado. De onde saiu essa, há muitas mais. São pré-históricas e as imaginamos pós-históricas, as únicas que sobreviveriam ao apocalipse nuclear. Qual o segredo desse inimigo que não ataca os seres humanos, mas é capaz de arrepiá-los com a simples menção de seu nome: barata!
Numa função que já foi do rato, ela mistura tudo o que trabalhosamente separamos. À noite, reina sobre frestas e buracos, faz do nosso espaço uma peneira insegura, por onde a podridão ameaça o mundo esterilizado e diurno. As casas dos mais favorecidos têm tratamento de esgoto, água encanada, mas a barata mistura as classes, não está nem aí para as castas.
Quanto mais civilizados, mais nos empenhamos em separar os diferentes tipos de lixo, o luxo do lixo, o sujo do limpo, o saudável do nocivo, o natural do artificial e assim por diante. As duas extremidades do tubo digestivo devem ficar tão afastadas quanto a cozinha e o banheiro, mas se confundem cada vez que a boca diz “merda”. As crianças pequenas, que sabem das coisas do seu jeito, acham que a parturiente defeca o bebê, enquanto os adultos convivem com fantasias que também, do seu jeito, confundem as coisas. Com seu corpo asqueroso e patas peludas a barata, esperta e furtiva, carrega o esgoto para dentro da intimidade higiênica da nossa morada. “Vocês são cheios de frestas que nem sabem que têm, mas eu sei”, diria ela, em nossos piores pesadelos. É uma terrorista que embaralha o mundo.
A casa é morada do corpo, tanto quanto ele é a morada da alma. Nos sonhos, casa e corpo se equivalem; na realidade, fora dela somos vulneráveis como tartarugas sem casco. É fundamental manter o controle do que entra, sai e circula pelo nosso bunker. Mas não há casa sem baratas, assim como não há vida sem máculas. Julgamo-nos corretos e construtivos, mas somos freqüentemente invadidos pelo ciúme, a inveja e o egoísmo. Somos capazes de pensamentos inconfessáveis.
É mais ou menos como me sinto em relação aos recentes casos de corrupção política, certos políticos parecem estar sofrendo transformações kafkianas, baratificando-se a céu aberto. Meu ingênuo reduto de higiene moral foi invadido por um exército de baratas asquerosas. Eu deveria saber que em nenhum tempo e lugar estaremos a salvo delas… Mas, como escreveu (neste sábado no Cultura) meu amigo Edson Sousa, em defesa dos sonhos que acordam, ao contrário dos que anestesiam: se acreditarmos que mais nada é possível, viveremos embriagados com a podridão de ontem. E isso também é vida de barata…