Lágrimas necessárias
Sobre a série de livros infantis Desventuras em Série
A felicidade é a mais árdua das tarefas e as crianças então são as piores vítimas deste mandato, elas têm a incumbência de saldar contas passadas, presentes e futuras de seus adultos com a felicidade. Porém há mais sabedoria do que ingenuidade nelas, e é esta a responsável por um sucesso editorial infanto-juvenil. Trata-se de Desventuras em Série, publicação da Companhia das Letras. Escrita por um inglês que usa o pseudônimo de Lemony Snicket, narra a história dos três órfãos Baudelaire, nascidos em berço de ouro, que perdem tudo no mesmo incêndio que causa a trágica morte de seus pais. Desamparados, vagam de casa em casa, submetidos ao sofrimento, à pobreza e à maldade de um vilão. Para o autor, eles “são as pessoas mais infelizes do mundo” e ainda adianta que o final será também uma desgraça. É disto que os jovens leitores precisam.
A saga lembra David Copperfield, de Charles Dickens, cujas tristezas foram narradas para um século XIX disposto a se horrorizar com os abusos que a criança era submetida. Isto marca época, pois até então a autoridade dos adultos nunca era demasiada, suas lágrimas faziam parte e a ninguém estranharia o uso do trabalho infantil. Dickens faz o leitor sofrer quando o adulto é grosseiro, não compreende o que se passa na alma da criança, lhe nega oportunidades de estudo e não a protege das intempéries. A partir desta valorização da criança como objeto de atenção e cuidado, a orfandade encontra outro significado. Nas histórias de fadas, a orfandade é a deixa para que o personagem faça sua jornada de crescimento. É graças à morte dos pais que as princesas Bela Adormecida e Branca de Neve iniciaram o processo que faria delas mulheres dignas de seus príncipes. No caso de Copperfield e sua versão moderna, os órfãos Baudelaire, seu sofrimento pelo abandono é protagonista, não apenas uma premissa inicial.
A família é hoje um ninho cada vez mais aconchegante e empenhada em edulcorar o mundo que espera aos filhos A atualidade destes escritos literários tão sofridos sobre órfãos lembram que para crescer as lágrimas são necessárias. Os pais precisam morrer um pouco para que se possa partir, assim como o espírito se lapida a partir da necessidade de solucionar problemas. A escolha deste filão literário por tantos jovens abre espaço para defender a complexidade da alma humana e sua cota de sofrimento. O que não deixa de ser um abalo na soberania do imperativo da felicidade que tanto atazana nossas vidas.