Lavoura arcaica. Semeando amores, colhendo incestos

Texto sobre o livro Lavoura Arcaica

“E eu sentado onde estava sobre uma raiz exposta num canto do bosque mais sombrio”.

Num tempo em que a ficção se povoa de tantas aventuras, os caminhos do inconsciente ainda são o pior dos labirintos. Nele entraram todos os leitores que consagraram o livro “Lavoura Arcaica”, escrito por Raduan Nassar. Filmada por Luiz Fernando Carvalho, a história vai ao encontro de um público ainda maior, arrastando consigo tanto impacto quanto em sua aparição impressa.

Quando uma pessoa inicia uma análise, lhe pedimos que diga tudo sem pensar, sem estruturar as idéias, sem se preocupar com a autenticidade da frase. Isto não produz um discurso confuso, apenas propicia o surgimento de sentidos pouco óbvios. Assim é ler “Lavoura Arcaica”. Dentro dos capítulos, não existem pontos, é um jorro só, onde os personagens se alternam e são referidos sem prévio aviso, contagiando assim uns aos outros pelos elos que os unem na subjetividade do narrador.

Mestre de cerimônias de seu universo, André, o personagem central, chama a espiar no seu buraco de fechadura. No livro, conhecemos André através de Pedro, seu irmão mais velho, que foi incumbido pelo pai de trazê-lo de volta para casa, sendo esta uma família da qual ninguém deveria sair. Os irmãos bebem num quarto sujo de pensão e o irmão desgarrado vai contando por que partiu e o que pensa da família. Ao escutá-lo, as certezas do mundo de Pedro, o irmão certinho, vão se manchado de angústia. De volta para casa, André continua seu trabalho de provocador.

Na calada da noite, André vai à trouxa de roupa suja da família e enterra suas mãos naquelas roupas com cheiro da sua gente. Metáfora de sua relação com o ambiente em que vive, o manuseio das roupas usadas permite acesso àquilo que a família produz, lava, descarta e esconde. Em sua pesquisa olfativa e táctil, André ilustra muito bem que as famílias são como as pessoas: um iceberg, do qual só vemos a pontinha.

O mundo de Lavoura Arcaica é o de uma família fechada, cujos filhos atestam a sufocação. O pai faz seus discursos sobre os homens e mulheres que eles devem ser, mas a casa transpira a incapacidade que toda família tem de ver os filhos partirem. Na definição do narrador: “Se o pai, no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição”. Com carícias ou reprimendas, ficam todos ali à mercê desse amor opressivo dos pais. André é o único que escapa, mas foge que nem criança, que fica a vagar pelas redondezas, frequentando bordéis e esperando resgate. Ao reingressar à casa paterna, com sua harmonia de objetos, hábitos e limpezas, André traz consigo a angústia com que partiu. Ele tinha levado ao pé da letra o voto de saciar toda sede no poço da casa. Amou sua irmã, incestuosamente, como a uma mulher.

O outro livro do mesmo autor, “Um copo de cólera”, leva à mesma viagem que confunde a mulher com a mãe e o homem com o bebê. A mulher se entrega ao homem, submissa e complacente ao sexo e a seus caprichos, mas só após dispensar-lhe todo tipo de cuidado materno. O jogo do amor enreda ambos em uma alternante posição de objeto de desejo. Nassar lembra que a condição de objeto de desejo não é privilégio feminino, pois se um dia fomos filhos, sabemos da dor e delícia de ser um bebê. A cólera referida neste título, nasce do claustro do útero materno, onde o ar rarefaz e graças a isso precisamos crescer. A relação amorosa é um reencontro com uma entrega que gostaríamos de esquecer e jamais paramos de procurar.

Em “Lavoura Arcaica”, André exige que se é para ficar em casa ele quer prazer, e a irmã Ana é seu objeto de desejo. Não só seu, pois de quando em quando há festejos e neles sua irmã é a musa. Arma-se uma roda que gira ao som da flauta e em seu interior ela dança, sensual e ousada.

O texto de Nassar é precioso pelo seu anti-romantismo, por lembrar o tecido incestuoso com que se tramam vidas e amores. Estamos acostumados a associar a lavoura e a vida familiar simples dos camponeses, à pureza, contrapondo-os aos valores familiares perdidos da nossa cultura urbana. Ledo engano, expor raízes é expor fraturas. O mesmo amor que constrói uma criança é o que a devora no apetite de desejos nada castos. A mesma lei que educa é a que sufoca e paralisa. Não são corrupções, desvios do caminho, são apenas a outra face da moeda.

Sempre soubemos disso, a psicanálise fez fama tentando avisar aos navegantes, mas de certa forma é preciso ignorar. Para melhor compreender quão insuportável é a visão dos subterrâneos das relações familiares, basta imaginar como seria se nossa pele fosse transparente. Passaríamos o dia olhando o coração bater, o pulmão inflar, o estômago fazer seu trabalho, em pânico de que alguma parte do processo fosse mal sucedida. Há coisas que ficam bem na obscuridade de seu funcionamento.

No caso da família, além de pouco saber sobre votos de amor, morte e possessão, criamos ficções úteis. Freud chamou-as de “Romances Familiares”. Cada um tem o seu, nele imaginamos pertencer a outra família, mais nobre em algum aspecto do que a que nos originou, por isso muitos fantasiam ser adotivos. Claro que Freud também não nos deixou esquecer que pensar que nenhum laço de sangue me liga aos meus parentes, deixaria livre o território para se entregar aos desejos sexuais incestuosos. Seja por um ou outro motivo, a família real sempre vive à sombra de outra fantasiada.

A família imaginária é a purificação das máculas da nossa e a família rural presta-se a esta fantasia. Hoje, nossa sociedade vive sem fiadores éticos. Não confiamos que os bem sucedidos sejam de bem, por isso tornamo-nos nostálgicos. Associamos o contato com a natureza a alguma forma de autenticidade, de existência longe da corrupção onde nasceria a perversidade.

O mundo rural de Raduan Nassar gesta todo tipo de monstro, lembrando que o bicho homem carrega esses amores e ódios em seu interior, independente do habitat. Amamos aquele que nos possui e o odiamos por isso. Desejamos ardentemente possuí-lo, mas seriamos capazes da matar para nos livrar dele. Afinal, quantas vezes, perdemo-nos em devaneios onde assassinamos justamente aqueles que mais amamos?

Enterrando os pés no fresco húmus da terra, deixando o corpo cobrir-se de folhas, plantando-nos, pretendemos alguma fora de enraizamento. É aí que a história nos leva ao encontro da volúpia, do amor incestuoso, do ódio mortífero ao pai que se teme, do voto de morte ao filho que decepciona. Estas são nossas bases. Não conhecê-las é pior. É como plantar sem conhecer o solo e o clima. Por isso são pra lá de bem vindos todos aqueles que abalem as lorotas que nos contamos. Por isso leia, assista, se tiver coragem. É necessária a valentia de sentar, que seja por algumas horas, nas suas raízes expostas.

Publicado no “Correio da APPOA” número 99, ano IX
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