Lembraram de Mim
Sobre o filme O ano em que meus paisa siram de férias, a vida das crianças
Como muitos da minha geração, tenho uma história marcada por múltiplos silêncios, códigos, frases entreditas e olhares paranóicos. Cresci entre sobreviventes dos campos de extermínio, mudos sobre suas desventuras na Europa, e vivendo entre adultos, no Uruguai e no Brasil, cujas opiniões políticas deviam ser caladas. Era questão de vida ou morte, porque o espírito dos carrascos parece reencarnar com uma certa facilidade. Minha infância foi habitada por fantasmas de gente torturada, morta, enterrada viva ou desaparecida. Havia a grande guerra do passado, com seus traumas pendentes, e a obscura guerra em curso, com o medo onipresente. Em minhas memórias as tramas de Auschwitz e das ditaduras latino americanas se entrecruzavam.
Veio de Cao Hamburguer, diretor de O ano em que meus pais saíram de férias, uma das abordagens mais delicadas da solidão das crianças naqueles anos de chumbo. O menino Mauro vive paralelamente a paixão futebolística, na gloriosa copa de 70, com o desaparecimento de sua família de militantes políticos. Ele está só, mas é membro orgulhoso duma multidão eufórica.
Época estranha, onde era muito bom e muito ruim de ser brasileiro. A situação do menino e do Brasil são equivalentes: ele oscilava entre a tristeza pessoal e a alegria da torcida, num país que crescia em prestígio esportivo enquanto em seus porões a inteligência nacional era sufocada. Nesse contexto, a copa não era apenas distração, pão e circo para o povo, era uma estratégia de sobrevivência, era a coletividade possível do momento.
Hamburger nos re-conecta emocionalmente com o espírito da época. Muitos adultos eram como crianças, compreendiam fragmentariamente. Alguns até se sentiam inquietos, muitas vezes paralisados, mas todos torciam. No Bom Retiro paulistano do filme, brasileiros imigrantes de todo tipo, falantes de um português oblíquo, encontraram na seleção canarinho um jeito de pertencer aos “90 milhões em ação, pra frente Brasil”. Para os brasileiros natos ocorria o mesmo, o coração da nação corria redondo em campo, o resto era silêncio.
Crianças são cidadãs a seu modo. Por mais que os adultos se calem, mintam e omitam, elas vão observar atentamente tudo. Não farão comentários, são dotadas de extrema politesse. Num velho filme francês, Jogos Proibidos (René Clement, 1952, disponível nas locadoras), uma garotinha e seu amigo fazem uma versão lúdica do mundo assombrado que lhes tocou viver, a França ocupada. Eles constroem um cemitério de animais, lembrando que na guerra a personagem principal é mesmo a morte.
A vida das crianças não é dissociada da dos adultos, embora tenham pouca chance como protagonistas, estão longe de ser figurantes. Como seus pais, Mauro sofreu e sonhou enquanto brasileiro, ganhou a copa e perdeu a família. Crianças não são meras testemunhas da história, são participantes e intérpretes, elas são o futuro nutrindo-se do presente. Recordo do silêncio dos adultos da minha infância, talvez por isso meu ofício seja, como psicanalista, o de desvelar segredos e histórias.