Madame Carlota

Sobre o misticismo feminino

Macabéa, personagem de “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector é pior que feia, é um nadinha de gente. Moça que “ninguém olhava na rua, era café frio”, com “olhar de quem tem uma asa ferida” e, pior, nem sabia que era infeliz. Essa figura insípida teve um único momento de glória na vida: quando consultou Madama Carlota, médium e cartomante. Prevendouma paixão com um estrangeiro rico, de olhos azuis, a Madama fez brotar uma mulher das entranhas daquele corpo árido. Quando ela poderia sequer ousar fantasiar uma coisa dessas? Saiu de lá “grávida de futuro”, sabendo que um dia ia botar corpo, ser amada. Mais não conto a modo de não estragar a história.

Somente uma outra mulher poderia criar personagem feminina tão triste como Macabéa. Os homens, por mais misóginos que sejam, ainda tendem a descrever as mulheres com certo recato na crítica: são gostosas, mães-coragem ou têm enigmáticos olhos de ressaca, como Capitu. Mas nós, que nos conhecemos, somos ferinas, inclementes umas com as outras, tanto quanto fazemos frente ao espelho. Não bastasse a língua ácida que usamos para nos comunicar, ainda temos pouca consideração pela sabedoria umas das outras. Se alguma sugere algo para a mais próxima é metida, está com inveja, se acha muito ou então o que diz não passa de preconceito ou crendice popular. Para uma mulher poder escutar a outra, é bem vindo um avalista do além. Se qualquer amiga ousasse dizer metade das verdades que escutamos, sorvendo cada palavra, de uma astróloga ou taróloga o resultado seria, no mínimo, um tapa na cara.

Por que, afinal, nossas palavras valem tão pouco quando ditas de forma nua e crua? Provavelmente porque farejamos ali excesso de crítica e pouca autoridade social. Há séculos as mulheres guardam um conhecimento sobre coisas de que ninguém quer saber, a roupa suja da humanidade. Papo de mulher é cri-cri, entenda-se que é sobre a vida privada, fofoca ou coisa de lavadeira. Já as sábias, sempre foram personagens ambíguos, poderosas, libidinosas, bruxas que comem criancinhas. Porém, se formos olhar com cuidado, mais do que engolir crianças, nossa especialidade é pari-las. Além disso, quem sempre soube da intimidade dos homens públicos? Suas mães, mulheres ou amantes! Somos há centenas de anos guardiãs dos segredos da potência masculina, dos fracos do corpo e da alma deles e nossos. Mesmo públicas, sempre fomos parte da vida privada. Quer mães ou prostitutas, tradicionalmente nosso conhecimento sempre foi de foro íntimo.

Por tudo isso, a palavra feminina fica mais audível quando parece ser uma voz do além. No papo entre as mulheres convém incluir um terceiro, que parece soprar no ouvido as verdades que treinamos séculos para enxergar. A questão é que para ser clientes da Madama Carlota, coisa que todas potencialmente somos, é premissa que, pelo menos num cantinho da alma, cheguemos a ela desacreditadas qual Macabéa. O místico que procuramos pode até ser homem, mas homem tende mais a ser guru, guia espiritual de alguma fé instituída, seguindo a longa tradição de liderança da sua espécie. Já a mulher tende a exercer um poder avulso, cheio de mandingas, de saberes cochichados entre quatro paredes.

Por trás de nossa vocação para o misticismo nem tudo são rosas. Porque dentro de cada Clarice (linda, enigmática e talentosa) mora uma Macabéa. Sempre desconfiadas da nossa valia, depositamos nossas interrogações nos olhos de outro ser humano. O amor é a resposta mais rápida para as perguntas mais complicadas. Sou amado, logo existo. Além disso, esse sempre foi nosso campo de atuação.

Há séculos cultivamos uma mestria restrita à vida amorosa e privada, separada da coisa pública por grossas muralhas. Essas têm sido mais longas que a da China e mais difíceis de derrubar que o muro de Berlin. Mas não perdemos por esperar. Seremos, cada vez mais, mulheres importantes, com o acréscimo de que ainda saberemos os segredos de alcova como ninguém. Só falta mesmo é acreditar umas nas outras.

01/01/06 |
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