Mafalda quarentona
Sobre os 40 anos de publicação da personagem de Quino
Mafalda é uma menina petulante, fonte inesgotável de perguntas irrespondíveis e observações constrangedoras, um pesadelo para seus adultos. Personagem de tiras humorísticas de jornal, publicadas na Argentina desde 29 de setembro de 1964 até 1973, ela sobreviveu pelas três décadas seguintes graças às compilações em pequenos livros, a bordo dos quais chegou às gerações posteriores. Filha do humor inclemente de Quino, ela se permite questionar tudo. Apesar de seus cinco ou seis anos de vida, não pára de pensar nos descaminhos da humanidade, na beligerância dos povos, no poder dos militares (os golpes pipocavam), nos problemas do terceiro mundo e na podridão dos políticos de plantão. Ela brinca de governo, escuta notícias no rádio e filosofa sobre um globo terrestre, que é seu brinquedo predileto, tudo muito engajado. Mas Mafalda é tudo o que na verdade as crianças não são.
Quino percebeu que a criança é o refúgio de uma utopia ética. Só o olhar infantil nos revelaria o ridículo que nos cerca. O discurso de Mafalda seria o dos adultos, se pudéssemos manter a pureza que supomos nas crianças e a capacidade crítica dos jovens. Ela não é uma criança possível, mas encarna a irreverência que trazemos, mais ou menos adormecida, dentro de nós, quando, na luta pela sobrevivência, ficamos fadados ao emagrecimento das utopias. Aliás, embora Mafalda se reserve o papel de ser sensível e idealista, entre seus amigos há representantes dos destinos estreitos que a vida nos reserva: Susanita é o protótipo de mulher mesquinha, preconceituosa e fofoqueira, seus sonhos se restringem aos filhinhos que terá; Manuelito só pensa em dinheiro, um atividade prá lá de adulta; enquanto o angustiado Felipe sofre com eterna procrastinação de tarefas, fato que atinge a esmagadora maioria dos mortais em todas as idades.
A família de Mafalda é equilibrada e amorosa, mas seus pais são medíocres e volta e meia precisam tomar nervocalm para fazer frente às provocações da filha. Por mais coerentes que sejamos com nossos ideais, as exigências do trabalho e da família nos assemelham mais a eles do que a essa pequena idealista. No entanto, gostaríamos de ser livres, como aquela criança do conto que pôde gritar: O Rei está Nu!, enquanto os adultos em roda tentavam acreditar na mentira que lhes era vendida. A popularidade dessa menina, mantida pelos últimos quarenta anos (principalmente nos países latinos de língua espanhola), demonstra que há ainda muitos adultos que querem preservar a sua Mafalda interior.