Máquinas mortíferas

Sobre a violência no trânsito

Mais um feriadão, mais uma cota de almas sacrificadas aos deuses do automóvel. Motoristas bêbados, excesso de velocidade, ultrapassagens tenebrosas, sem contar as estradas em más condições. Quem dirige com cuidado está cansado de ver os fominhas pressionando todo mundo para chegar antes. Será? Não creio que seja nos minutos a menos de trajeto que um afobado consegue sua glória. Ela está ali mesmo, disputada na arena do asfalto, enquanto ele mostra aos outros a potência de seu motor ou a premência de sua vontade.

Conjugo no masculino porque as companhias de seguros dizem que as mulheres são imprudentes em menor número. Mas não faltam nas esquinas da cidade essas senhoras irritadas, vociferando como camioneiros, do alto de possantes camionetes, boas para levar implementos agrícolas e não criancinhas para a aula de ballet.

Em ambas cenas o carro empresta a seu motorista uma imagem de potência. É exatamente como as propagandas nos vendem: vista a carenagem metálica direto no corpo, em pêlo (tem até estilista de moda assinando novos modelos) e saia por aí. Os atributos do veículo se incorporarão a você: atraente, ágil, possante, veloz. É notório o desprezo que se têm pelo transporte coletivo, por parte dos que podem dar-se a esse luxo, é claro. Talvez a insegurança de andar a pé e a praticidade fossem argumentos convincentes para ver na rua quase a proporção de uma pessoa por carro. Na verdade, andando por aí sem um veículo muita gente sente-se nua, despojada de sua personalidade, por isso não se importa em circular o tempo que for preciso em busca de uma vaga de estacionamento, ou em acabar transformando postos de gasolina em lugar de lazer, onde podem beber juntos, o dono e sua máquina de estimação. Enfim, carro também é perigoso porque sinaliza a importância social que seu proprietário gostaria de ter e, desafortunadamente, algumas vezes a imprudência faz parte desse kit. Também é por isso que as pessoas dirigem bêbadas: o álcool dispensa o bom senso e o controle sobre o carro é o sinônimo de “estar podendo”, são porres que se somam. Os que estão inebriados com a própria potência não temem a morte, nem a própria, muito menos a dos outros, toreá-la sempre teve seu charme.

Lutar contra a violência das estradas exige questionar nossa insegurança crônica. Só transformamos o asfalto em ringue porque nos sentimos fracos. Talvez, uma boa política seja fazer chacota dos imprudentes, tratá-los com o escárnio que se dirige aos que estão tentando bancar o que não são, como um careca de peruca ou a uma senhora idosa com roupas de adolescente. Outra boa medida seria proibir as propagandas que engrandecem a velocidade e a potência metálica, ou colocar avisos, como nas carteiras de cigarro. O Ministério da Saúde adverte: correr ridiculariza sua imagem; ou correr revela sua inferioridade, ou correr desvela sua impotência.

17/11/04 |
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