A marcha da família

Sobre o filme A marcha dos pinguins, sobre o trabalho de ser pais

Dizem que a vida só é dura para quem é mole. Se há uma constatação inevitável ao assistir o documentário “A Marcha dos Pingüins” é que somos molengas frente à instintiva tenacidade e valentia dos animais. Sou apaixonada por documentários sobre natureza desde a infância e posso dizer que o filme de Luc Jacquet não é um produto inusitado da série. Como tantos, ele abre a oportunidade de privar da intimidade de um grupo animal.

Nesse as imagens e a trilha sonora são lindas, enquanto a narrativa traduz a inclemente rotina reprodutiva desses bichos para o humanês. O bizarro é que este documentário encontra seu sucesso graças a um involuntário uso político, de ode à instituição famíliar e seus valores. Houve até quem viu nele um incentivo à monogamia e ao amor aos filhos. Pelo jeito, a família não deve estar vivendo um grande momento para necessitar auxílio dos pingüins.

O fato é que em nada nos parecemos aos animais, porque eles são simples e nós complexos. A humanização é a perversão da natureza e não uma harmonia com ela. Fome, sexo, reprodução, puerpério, morte, tudo complicamos e questionamos. E ainda, para nós ter filhos é uma opção nem sempre muito atrativa, não apenas graças aos métodos anticoncepcionais, mas sim ao questionamento da necessidade fazê-lo. Há cada vez mais pessoas optando por não empreender a jornada gigantesca e interminável que é a parentalidade.

De qualquer forma, o documentário de Jacquet metaforiza a marcha dos humanos que reproduzem. Apesar de que não o fazemos em lugares tão inóspitos, a tarefa não é menos árdua. Para os pingüins, depois de ultrapassado o primeiro inverno, os pais vão ocupar-se dos seus mergulhos e seus peixes pessoais, sem compromisso remanescente sequer um com o outro. Quanto a nós, corremos para baixo da asa dos nossos pais enquanto estiverem vivos e, se tivermos procriado, teremos que aturar o parceiro para sempre, pelo menos nas ocasiões solenes. Os pingüins se alternam na busca de alimento, assim como os casais contemporâneos se revezam na tarefa de trabalhar e gerenciar a vida doméstica. Os momentos de carícias e sexo dos pingüins são insignificantes frente ao que os espera na luta posterior. Tal como os pais de filhos pequenos, consumidos pela exaustão, constatam que é difícil salvar um amor dar garras da rotina de entrega ao bebê. Se sobreviver a tudo isso, a relação amorosa terá ainda que se mostrar capaz de superar as várias rodadas de negociação sobre colocação de limites, estilos e valores a ensinar…

Somos a sociedade do sofá, indolentes e pouco perseverantes, em nada nos parecemos aos pingüins imperadores. Porém, a sobrevivência da nossa espécie depende de que alguns tenham a vocação ou a vontade de superar seus limites. Depois de emprendida, a marcha da parentalidade é dura e interminável, talvez por isso ficamos fascinados com a fibra desses animais do mundo do gelo. Afinal, um dia alguém fez isso por nós.

dianacorso@portoweb.com.br

25/08/08 |
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