Memórias felinas

Sobre o Garfield que existe em todos nós

Meus gatos sempre abusaram de mim. Faziam gato e sapato, para ser redundante. Koshka, minha segunda cria felina, parecia dar discursos. Mesmo sem entender o gatês, eu sabia que ele estava reclamando do meu tempo de ausência, embora os dele pudessem durar dias. Ele era louco por briga e rabo de saia, suas temporadas mais caseiras coincidiam com olho purulento, orelha rasgada ou pata inchada. Entre minhas atribuições de escrava humana estavam, obviamente, os curativos. Minha primogênita, a Fera, era confinada num apartamento, o que só aumentava seu poder sobre mim, ela decidia em que posição eu iria dormir, sentar e comer, além de que sua farra noturna me exauria. Felinos passam o dia dormindo, assim ficam prontos para as noitadas. No caso da Fera isso incluía uma bolita de gude, que ela mantinha escondida e resgatava para fazer rolar pelo parquê e bater nos cantinhos nas altas horas da madrugada. Nunca consegui tirar a bolita dela, sumia providencialmente assim que eu me levantava, acho que ela guardava na boca…

Sempre supus que Jim Davis, o cartunista que criou de Garfield, tinha uma verdadeira experiência com gatos. A gestualidade da personagem, sua relação tirânica com o dono, o inabalável narcisismo felino, eram traduzidos à perfeição através de seu traço e das situações hilárias que ele cria. Soube, por entrevista na Folha, concedida por ocasião dos trinta anos da criação da tira, que ele cresceu numa casa com 25 gatos, devia ser um caos.

Nessa entrevista, Davis declara que ele se identifica particularmente com Jon, o fracassado e melancólico dono do Garfield, particularmente nas memórias de sua adolescência de garoto pouco popular com o sexo oposto. Já com o gato gorducho, sarcástico e exigente, identificamo-nos todos nós, nas lembranças da infância. A memória dessa época, na qual vivíamos a comer (bem) e dormir (muito) é preciosa. Crianças e gatos vêem os adultos como fontes de satisfação potencial e de exigências que não estão muito dispostos a atender.

Quando éramos crianças, os humanos grandes nos enxergavam como Odie, o cão idiota e brincalhão dessas tiras, ou como Nermal, um gatinho jovem e terrivelmente fofo, de quem Garfield morre de ciúme. Na verdade, embora parecêssemos uns bobinhos, faceiros e fofinhos por fora, éramos críticos e meio azedos por dentro, como Garfield. Por isso rimos tanto, porque embora pareçamos pessoas ocupadas e ponderadas por fora, ainda somos um gato gorducho, preguiçoso e egoísta por dentro. Pelo menos às segundas feiras.

10/12/08 |
(0)
Nenhum Comentário Ainda.

Comente este Post

Nota: Seu e-mail não será publicado.

Siga os comentários via RSS.