Meu netinho virtual

Sobre o fenômeno do Tamagotchi

Esta cada dia mais dificil fazer uma criança acreditar que o leite possa vir da vaca. Pelo gosto que anda eu também não acredito mas a questão não é essa. Nos afastamos da natureza, o ciclo vital nos é cada dia mais estranho, ver bixos crescendo, parindo ou morrendo é uma experiência que nem todos tem oportunidade. O ciclo das estações já não é contemplado nas possibilidades sobre as plantas mas nos transtornos que possa nos causar. Definitivamente nos afastamos da natureza, cada dia a louvamos mais, somos todos ecológicos mas mais urbanos. A natureza mesma já não é o cotidiano e sim o exótico.

Em Blade Runner, um dos exercícios de ficção mais caros de nosso tempo, os animais estão praticamente desaparecidos e os animais de estimação são simulacros eletrônicos perfeitos. Quem nos garante que os tamagochis não sejam o ovo (aliás tamago em japones é isso) desses seres? Caminhamos para o século XXI com animais de estimação eletrônicos, acabou o cocô na sala e as pulgas, é o triunfo da tecnologia. Será?

 O fato que o que faz sucesso hoje em dia com muitas crianças é um jogo de criar um animal virtual que simula um ser vivo. O aparelinho é bem feito: em suas carências o jogo é, como um animal seria, muito exigente. Trata-se do tamagotchi, brinquedinho eletrônico em cujo interior é possível “criar” um pequeno ser, constituido de poucas e mal traçadas linhas, a quem é necessário alimentar, por para dormir, educar, dar atenção, etc. A questão não é somente deixa-lo vivo, isso é relativamente fácil, o importante é que ele se transforme num bom tamagotchi. Conforme os tratos que teve, o bichinho vai se transformando, o espectro é grande entre uma forma ideal e a de um ser feio e inconveniente.

Não é somente necessário criá-lo, e sim cria-lo bem. O jogo é inteligente, não lida só com a dimensão da necessidade, mas simula demandas e é aqui que se revela instigante: na medida em que lidamos mal com a demanda, o tamagotchi pode ir para o brejo. Os tamagotchis não tem sexo, não formam famílias, comunidades, não procriam. Vem de um outro planeta e voltam para ele ao cabo de menos de um mês, 28 dias para ser mais preciso, um mês lunar.

 Mas a grande novidade, que fez desse brinquedinho motivo de discórdia, é o fato de que ele pede, ele bipa. Qual um despertador maluco que se governasse a sí próprio, o bichinho virtual bipa seu chorinho eletrônico quando precisa de atenção. Diferente da pacienciosa boneca que se deixa preterir em um canto da casa por meses se for preciso, o tamagotchi bipa insistentemente, exigindo cuidados de seu dono. Cuidados que se não forem dispensados a tempo, a criança pagará o desleixo com a tristeza de ver a criaturinha virtual morrer ou se transformar num animalzinho mal criado. O resultado terminou sendo um exército de crianças que se habituaram a andar com a engenhoca pendurada no pescoço para todos os lados, colégios proibindo o agente perturbador da atenção dos alunos, pais levando o netinho virtual para seus trabalhos, crianças levando o bichinho escondido na mochila.

 Já bem definido como “um agente virtual em tempo integral”, o brinquedo assusta muitos pais e educadores pela necessária conexão da criança com um aparelho, algo que exija dela responsabilidades que a muitos pareceram despropositadamente grandes para alguém tão pequeno. Curiosamente esses mesmos adultos que são tão ciosos de não sobrecarregar as crianças, não vacilam em matriculá-las no inglês, natação, futebol, música, ballet e sapateado antes dos cinco anos, mas isto não é excesso de responsabilidade não, é “apenas” a formação para o futuro que quanto antes, melhor será.

Mas uma parte deste argumento talvez nos interesse: o tamagotchi não é desligável, ele representa um ciclo de vida, pode ser deletado, o que equivale a matá-lo, mas uma vez iniciado, tem que se continuar a brincadeira. Vamos nos deter um pouquinho sobre isso.

 Todos os que um dia foram crianças sabem que parte da brincadeira está no direito de interrompe-la quando “fica chata”, o que nos consultórios de psicanalistas de crianças equivale a “vamos mudar de assunto”. Interrompe-se uma brincadeira quando se chegou a um beco sem saída, quando o sexo ou a morte se avizinham de maneira perigosa lá onde estavam sendo invocados. Se estes assuntos insistem em comparecer fora da convenção do recalque a que deveriam se ater, todo o processo é abortado, não importa quanto tempo se levou para construir a história, para posicionar os bonecos, para montar a casinha.Um brinquedo é um apoio para uma história, um objeto à mercê do papel que lhe couber, passiva marionete de nossos fantasmas. Pois bem, um tamagotchi é um chato que não se desliga, mas na verdade não creio que com ele se brinque.

Na verdade, um tamagotchi se “cria”, com ele  não se brinca. Ele ocupa, de forma acéptica e descarnada o lugar do animal de estimação. É justamente pelo fato de que tenhamos tantos topado esta brincadeira de um animal de faz de conta, que o bicho virtual tornou-se papão. O novo dragãozinho japonês expõe todo o caráter sintomático de nossa relação com as máquinas.

 Temos portanto três problemas num só, um brinquedo que não é brinquedo, um animal de estimação que não é um animal e um julgamento em ação: de se o dito aparelho é obra de Deus ou do Diabo na vida de nossos anjinhos.

Já discutimos porque ele não é um brinquedo, pois o pressuposto deste seria a sua passividade, poderíamos pensá-lo talvez na categoria de um jogo, “game”, palavra tão preciosa ao nosso tempo. A vida sob forma de game, eis a questão.

Os video games, que tanto enervam pais como fascinam particularmente aos meninos, expõe a fratura de quão frágil e descartável é nossa existência. No video game morre-se e mata-se o tempo todo e isso nos horroriza. Porém, pensemos nos antigos jogos de guerra, luta, forte-apache e cow-boy das gerações anteriores: se nos ativermos veremos que também aí morria-se como lemingues.

Os virtuais guerreiros ninja ou street-fighters et allii, não são mais sanguinários que os seus antepassados de chumbo ou plástico rígido, são porém mais rígidos em outro sentido e aqui encontraremos nosso problema: o soldadinho de plástico presta-se ao ritmo da história de seu dono, frágil objeto sem importância em sí, como o atesta a triste história do “Soldadinho de Chumbo”. O objeto virtual, por sua vez, não se deixa derreter, transformar, subverter. O game impõe suas leis, guarda seus segredos, sua hierarquia, rotina, fases. O tamagotchi marca a entrada das bonecas neste mundo virtual, por isso, embora muito usado por meninos também, é um game essencialmente femenino.

 Menos ousadas que seus antepassados, as crianças contemporâneas já não podem enfrentar o campo aberto do brincar. Evita-se aquele tempo de angústia que se passa entre o “de que vamos brincar?” e fica-se ciscando o chão, achando que uma idéia nunca vai vir à cabeça, e o momento que surge a idéia luminosa do que fazer.

 A tela do game, da tv, do computador, agora do tamagotchi, permanece ali sempre convidativa, mais olhando do que sendo olhada. O game, o tamagotchi, os jogos do computador, a televisão, são parceiros que nos esperam com um programa sempre pronto para preencher o vazio. Sendo assim, ao ocupar um lugar de parceria em nossa existência, não surpreende que programemos estes objetos com os temas que são mais caros à vida: a morte, o sexo, a violência, as leis, os segredos e aí vem o tamagotchi trazer em cheio o tema do filho..

 Na verdade, este tipo de brinquedo tem um precedente: como aqui, uma das preocupações dos EUA é com a gravidez adolescente, e uma das formas pensadas para conscientizar as jovens dos resultados nefastos da maternidade apressada é uma espécie de tamagotchi gigante. Trata-se de um boneco, simulacro de bebê que tem memória dos tratos que recebe. De maneira que se passar frio ou ficar molhado será registrado e cobrado no dia de aula seguinte, pois cada adolescente tem como tema de casa levar para casa e cuidar o “bebê”com toda a seriedade possível. Acredita-se que com essa experiência a futura mamãe adolescente seria desestimulada e evitaria tornar-se tal.

Tão assoberbados pelos cuidados exigidos pelo bebê eletrônico como deviam ficar as jovens submetidas à experiência anteriormente relatada, o pais que se tornaram avôs virtuais consideram isto uma provação. Relatam como uma verdadeira gota d’água que derrama o copo de infinita paciência parental: era só o que faltava, dizem as já atribuladas mães, corro o dia inteiro agora ter que cuidar deste brinquedo!

Convenhamos, os pais tem razão, é muito chato ocupar-se do netinho virtual, pior ainda quando o monstrinho morre atestando a  incapacidade do pai e da mãe de dar conta da tarefa.

Provavelmente esta é a maior lição deste game. A impossibilidade de se ocupar de um filho em tempo integral. Escutemos o que diz uma menina que, como outros de seu tempo, “criou” vários tamagotchis: ela o define como “um bichinho com quem se precisa ter responsabilidade, um ajudante para saber cuidar dos filhos”. Esta fala bem ilustra o que trago como uma primeira conclusão: para as crianças contemporâneas é claro que cuidar dos filhos é um saber que se aprende. Duvido que mesmo esta geração presente de pais, remetendo-me então a um passado muito recente, tivesse essa consciência da fragilidade do saber que embasa a paternidade.

 A menina em questão é minha filha e, graças ao netinho virtual, tivemos oportunidade de algumas conversas interessantes sobre como é difícil criar um filho, sobre o tema de quão dolorosa é para os pais a parte da disciplina da educação das crianças, sobre o medo de errar e o filho tornar-se um ser mal educado e desagradável. Exposta a extrema fragilidade de minhas certezas, tive que enfrentar o fato de que minha filha sempre soube disso e de que estes filhotes de tempos tão voláteis tem que crescer sem a ilusão da onipotência do saber parental.

 Mais de uma vez, tivemos que nos consolar mutuamente quando o bicho revelava uma péssima natureza ou simplesmente morria. A indulgência dos pequenos contemporâneos, na postura de compreender os pais em seus impasses e impotências, encontra sua outra face no crescimento impressionante de crianças apresentando todo tipo de conduta anti-social, seres extremamente reivindicativos, que aos gritos pedem nos lugares públicos ou em casa, que os pais lhes dem algo, um objeto, um grito, uma palmada que devolva a estes um lugar de consistência que se esvaiu. Péssimos tamagotchis, diríamos. As cenas de descontrole infantil multiplicam-se em todos os espaços, constituindo o que acredito ser a maior fonte de queixas que tem levado crianças aos consultórios dos psi de todos os tipos.

Concluimos então que as crianças sabem que a educação dos filhos se aprende e que a herança que recebem constitui-se mais de impasses que de certezas. Sabem também da falta, da impossibilidade de seus pais protegerem-nas “tempo integral”. O tema recorrente na literatura infantil, da criança que vive suas aventuras solitária e corajosamente, multiplica-se à exaustão. Multiplica-se na vertente da bravura e independência tão proclamada quanto necessária, principalmente quando os guias da jornada da vida são tão confusos, mas também proliferam os perigos, os inimigos, as ameaças. Como me dizia um menino com quem converso em meu consultório: de qualquer canto, em qualquer parte do jogo, sempre haverá um monstro disposto a acabar conosco.

 Já muito se falou sobre a necessária constituição do objeto fóbico quando o pai fica difícil de situar, pois bem, temos aqui uma verdadeira apoteose fóbica, um cenário inesgotável de “cavalos virtuais”, que Hans poderia frequentar sem tanto medo. O fato de que os games sejam uma frequentação tão regrada, repetitiva e partilhada pelos pares, creio ser uma necessidade. As regras e a sociaização são uma espécie de âncora que possibilita frequentar esse mundo sombrio dos objetos assustadores numa época em que Deus e o anjinho da guarda estão em baixa cotação. Quanto maior a lista de anjos, sabemos que menor a sua eficácia.

Mas a minha jovem consultora disse mais uma coisa que me ajudou a pensar, ela acrescentou que “o tamagotchi nem filhos ele chega a ter, pois vive no máximo até os vinte e oito anos”, o que no brinquedo equivale a 28 dias, e embora diga na embalagem que ele vai para seu planeta, nenhuma criança cai nesta história e todas, invariavelmente imaginam que ele morreu.

É interessante, pois numa época em que todos criam seus filhos para eles serem apenas o máximo, em que se aposta na precocidade como forma de largar antes na corrida pelo sucesso, vem o tamagotchi para mostrar que o amor parental pode ser algo despretencioso. Assim, embora a criança faça uma aposta no futuro do bicho, educá-lo e tratá-lo bem para que seja um “dos bons”, esse futuro nunca implica na superação dos pais, esgota-se num tempo curto, num ciclo restrito a pequenas vitórias (onde ele nunca sai da condição objetal do filho pequeno), que tornam-se insignificantes logo que conseguidas. Como quando um menino “vira” um game, passando todas suas etapas. A educação dos filhos entra para o rol das habilidades necessárias ao jovem viajante do tempo, é preciso virar mais esta tarefa. Assim, o joguinho vem atuar no mesmo sentido de quando ele mostra a necessária falta na prontidão dos pais, mostrando que eles não conseguem sê-lo em tempo integral, aqui também vem desbastar outro tema importante, o da expectativa depositada em cima dos herdeiros.

Assim, concluimos com nossos pequenos, que há algo de interessante nestes tempos de incertezas, algo que Freud tanto desejou: que pudessemos escutar as crianças, aprender com seu pensamento. O que talvez ele não dimensionou é que se pagaria um preço por isso, o da incerteza, o da angústia resultante do esvaziamento da consistência do saber parental.

Publicado no “Correio da APPOA”, número 54
18/01/98 |
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Um Comentário
  1. Life Corse permalink

    é verdade, eu comprei um, é terrível você tenta desligar e ele volta de novo, nossa é terrível, tem q ter responsabilidade
    as vezes eu tiro a pilha do jogo para poder dormir pq se n…

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