Mulheres assassinadas
Matar em nome do amor, uma epidemia.
Tem sempre o dia em que a casa cai. Elas perderam a esperança porque o perdão também cansa de perdoar. Uma sucessão de abusos, de surras causadas pelo ciúme delirante, finalmente encontrou um basta. Seus maridos e namorados ficam enfurecidos, não compreendem a rejeição. Quanto atrevimento! O que foi que mudou? Na lógica deles, vontade própria não existe nas mulheres, portanto a ruptura deve ser por causa de outro. Abstinentes da relação que lhes sustentava a virilidade, decidem lavar a honra ferida: elas não pertencerão a mais ninguém.
Léia, oito tiros; Eliene, marteladas; Caroline, degolada; Karla, 10 tiros; Bruna, grávida de 15 anos, facadas; Joyce, negou-se a ter relações sexuais com o marido bêbado, 16 facadas; Rosilene, 12 facadas; Elisângela, espancada até a morte; Tânia, esfaqueada, asfixiada e colocada na geladeira; Maria da Guia, pauladas; só para citar alguns dos muitos casos de outubro, recolhidos a esmo, espalhados por todo o Brasil.
Em todos eles os matadores eram ex-companheiros. É inevitável o choque com o montante de ódio expressado nesses assassinatos. Eles querem muito mais do que cessar aquela vida, precisam invadir, destruir-lhe o corpo. Não é nada rara a freqüência dos tiros no rosto, como forma de apagar aquele olhar que deixou de ser-lhes destinado.
O fim de um amor sempre causa desespero, sentimento de dissolução, perde-se parte de si. Há também a vergonha pública, pois amor e reputação têm seu destino enlaçados. Portanto, homens e mulheres deveriam equivaler-se nas manifestações de despeito, a dor é democrática. Não é o caso: elas se deprimem, podem praticar maldades, maledicência, partilhas litigiosas; já para muitos deles é uma questão de honra, de vida e morte.
Simone de Beauvoir lembrava que o prestígio social da guerra, território masculino, sempre foi maior que o do ato de dar a vida, atributo feminino. Assim, frente à impotência maior de ver-se privado daquela que se julgava possuir, decidir pela sua morte acaba sendo o exercício de um prática milenar.
Nos anos 80 usávamos a frase: “quem ama não mata”, lembrando que não é aceitável qualquer condescendência com os crimes passionais. Melhoramos um pouco na punição dos assassinos de mulheres, que já gozaram de maior prestígio, acredite. Porém, um dos graves obstáculos na prevenção dos assassinatos de mulheres é a resistência delas, assim como das pessoas ao seu redor, em levar a sério as ameaças que sofrem. Elas acreditam que faz parte do amor e conseguirão reverter a situação. Protegem o agressor como se fosse um filho travesso, são incrédulas frente à letalidade do seu homem. A mulher não tem intimidade com a morte enquanto argumento final, atribuem a eles a capacidade que elas têm de duelar com palavras.
Nossas leis são melhores na teoria do que a prática. O amor, em sua face possessiva e descontrolada, continua sendo um serial killer de mulheres. Isso é assim porque no fundo ainda se espera que a mulher se apegue à relação acima de tudo, que ela exerça seu poder através da entrega. São restos, ainda ativos, de um tempo em extinção. O segredo para a erradicação da violência está num trabalho com as potenciais vítimas: é preciso que elas acreditem que serão apoiadas, que maus tratos são inadmissíveis, que correm riscos desnecessários e não devem morrer. Nunca mais.
Interessante, Diana. Mas, vc não acha que muitas dessas mulheres violentadas, que insistem na relação, vai além do desejo de “duelar”? parece-me que há um avesso do discurso de vítima. Bom, na verdade estou pensando alto (e escrevendo). Mas, quando li esse texto, lembrei dos dados estatísticos que fez daquele livro “50 tons de cinza” um best-seller. em uma entrevista que a autora deu, ela disse que o sadomasoquismo é uma fantasia que as mulheres desconhecem os “princípios básicos” e afirma que essa “novidade” exposta no livro foi responsável pelo elevado número de leitores atraentes pela obra. vc não acha que, por trás desses relacionamentos “patológicos”, há traços sadomasoquistas?
Concordo Diana. Intervenções que visem acabar com a violência contra a mulher devem começar por oferecer suporte sem julgar a posição que muitas das mulheres vitimizadas pelas violência caem de sentirem-se culpadas e causadoras do comportamento abusivo de seus homens. As mudanças têm que vir da resposta social de tolerância “0” com abusadores.
Da mesma forma é fundamental separar os contratos sadomasoquistas entre casais das relações abusivas onde uma das partes e vitimizada.