Mulheres indomadas

Sobre o filme “Gata em teto de zinco quente”, adeus a Liz Taylor


Ao chegar em casa Marge encontra seus detestáveis sobrinhos, a quem chama de monstros sem pescoço, que a recebem com uma salva de sorvetes. É com prazer que ela revida, com grossa camada de sorvete esfregada no rosto da criancinha malcriada, para horror da cunhada, grávida do sexto filho. Ela entra ao encontro de seu marido, que não se alegra com sua presença, não quer mais do que o copo de uísque, sua companhia predileta. Ela ainda tenta fazer-se notar, tagarela enquanto limpa as belas pernas que as crianças haviam sujado, depois sobre elas coloca delicadas meias de seda, a câmera sobe por elas junto com nosso olhar. Nós, do público, não ignoramos seus atrativos: é Elisabeth Taylor, no auge da sua beleza, que encarna a apaixonada e rejeitada protagonista de “Gata em teto de zinco quente”. Trata-se de uma mulher cuja beleza não consegue retirar o homem amado da melancolia, sua dedicação não se sobrepõe ao efeito do álcool, que o anestesia da dor e da covardia de viver.

O filme é de 1958, baseado numa peça de Tenessee Williams, que aliás detestou a versão. Corriam os anos do pós guerra, nos quais as mulheres, em sua maioria ainda esposas e mães, não conseguiam voltar às trincheiras do lar, mesmo que quisessem. Sequer a possibilidade de encarnar a mulher objeto, aquela para quem as belas pernas bastariam para triunfar, foi de bom proveito para essa geração. Trata-se das infelizes donas de casa retratadas por Betty Friedan. Suas filhas herdaram-lhes a insatisfação, mas foram à luta, participando da revolução dos costumes da década que principiava.

As mulheres de Elisabeth Taylor, suas personagens mais marcantes, eram esposas, mas estavam mais para megeras do que para domadas. A verve dessas mulheres de visão sagaz e frases impactantes as diferenciou das suas mães e avós, que se contentaram em oferecer ao mundo sua beleza e dedicação à família. Nas falas dessas personagens, seus maridos são desmascarados: o patriarcado vai sendo deposto pelas personalidades fortes delas. Ora os denunciam, ora os fortalecem, ora com eles disputam território, a trama varia, mas o protagonismo feminino explode, mesmo que ainda preso aos estreitos limites do lar. O homem frágil de Marge encontra a oportunidade de reatar com seu pai à beira da morte graças à persistência dela em recupera-lo para si e para a vida. Para isso de nada serviram suas pernas. Longe dos papéis tradicionais essa mulher conquista a admiração do patriarca: o sogro moribundo tem sua eleita na jovem, que não lhe dera netos, nem conseguira trazer prosperidade ao marido bêbado.

A gata em teto de zinco quente é aquela que não se acomoda, não adormece, não pára, suas patas queimam e doem. Elisabeth Taylor deu corpo e alma às mulheres afastadas do refúgio da mesmice. Idômitas, língua afiada, perspicazes, elas nunca mais foram objeto decorativo, mesmo que tivessem olhos violetas. Liz, obrigado e adeus.

26/03/11 |
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