Música de cortar cebola

Várias formas de chorar, inclusive a da “sofrência”…

Na Adega das cebolas, estabelecimento acessível a consumidores seletos, não havia nada para comer, nem tampouco, apesar do nome, beber. Serviam-se lágrimas. Médicos, políticos, intelectuais, funcionários públicos, estudantes, iam lá para chorar as mágoas, literalmente. Após as mesas terem sido solenemente ocupadas, convivas constrangidos recebiam tabuinhas, facas de cozinha e uma cebola, que cada um cortava a seu modo. Os esguichos do vegetal eram a deixa para começar a chorar, copiosa ou delicadamente, e cada um narrava aos companheiros de mesa seus motivos. Concluído o rito de choro e confissão, todos retiravam-se considerando que o alívio sentido justificava o alto investimento.

Ambientada no pós-guerras alemão, a cena é contada por Günter Grass em O tambor, publicado em 1959. Ela sempre me intrigou, pois por vezes o consultório de um psicanalista parece-se com uma Adega das cebolas. Pelo menos a princípio de conversa. Chorar é como pontuação de frase: produz o ritmo que altera o sentido, mas não lhe define o conteúdo.

Boa parte das lágrimas é de caráter evocativo. Elas vêm depois do impacto, quando estamos repassando fatos, revivendo mentalmente aquilo que machuca. É claro que também podem surgir no momento traumático do rompimento, da morte, do fracasso, do sentimento de desvalia ou abandono, mas a dor quando brota costuma encontrar-nos estarrecidos, sem expressão.

Chegada a hora do pranto, há choros que são uma convocação, do tipo “faça alguma coisa”. Há os olhos que se molham numa frase, disfarçados, por vezes envergonhados. Há o choro silencioso, prolongado e sofrido, que exige respeito e silêncio da testemunha. Há também o choro catártico, do tipo da Adega. “Algum dia se designará nosso século como o século sem lágrimas, apesar de todos os seus sofrimentos”, escreveu Grass. E falava da Alemanha derrotada e estarrecida do século passado. Esse tipo de pranto, digamos artificial, parecia necessário logo após uma época em que não houve espaço para chorar, sobreviver era prioritário.

Coube a um jovem cantor baiano chamado Pablo (nascido Agenor dos Santos), um ídolo de ocasião, instalar a coqueluche popular da “sofrência”. O neologismo define o pranto escancarado provocado pela sua música, quer seja em shows ou postado em vídeos. Suas letras de coração ferido não diferem em nada de outras baladas bregas, mas caiu das graças da audiência como uma licença para chorar em público, principalmente para os homens. A pequena epidemia de lágrimas causada por Pablo difere do rito contido da Adega de Grass. Aqui, o choro, como ocorre com o sexo, o corpo, o amor e nossos sentimentos em geral, torna-se espetacular, catártico e performático. Chorar faz bem, mas tenho uma triste saudade da privacidade dos afetos.

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