Novela de sonhos e pesadelos

Sobre o livro Breve Romance de Sonho de Schnitzler

Escrita pelo vienense Arthur Schnitzler em 1918, a história de Fridolin e Albertine, um jovem e bem estabelecido médico e sua esposa, é quase isenta de ação, mas intensamente movimentada na imaginação. Num momento apaixonado, o casal decide compartilhar fantasias e sonhos, com os quais praticam o jogo, tão comum, assustador e atraente, de provocar-se através do ciúme. Na vida real, sempre parecemos ficar muito assombrados quando nos pilhamos amando de forma tão estranha: causando brigas, sofrendo e impingindo dores naqueles que mais nos importam. Surpreendemo-nos também quando descobrimos que somos capazes de criar tantos enredos imaginários, os quais envolvem outros personagens numa relação que devia ser íntima e dual. O mais comum é o recurso de utilizar-se fantasia de traição para temperar nossa cena amorosa.

Pois bem, Albertine construiu e relatou fantasias e sonhos que instigaram o ciúme de Fridolin. Ele, além de confessar também uma aventura mais imaginária que real, sentiu-se impulsionado a uma série de andanças noturnas, nas quais visitou boa parte do clássico repertório imaginário masculino, como a existência de confrarias perversas de homens poderosos e perigosos que escravizavam mulheres e a gentil prostituta que precisa de salvação. Mais observador do que participante dessas aventuras, Fridolin ilustra com seus descaminhos o significado das palavras de Albertine que encerram o livro: suspeito que a realidade de uma noite ou mesmo de toda uma vida não significa sua verdade mais íntima. Fridolin e Albertine descortinam para o leitor um terreno imaginário amplamente conhecido pelos psicanalistas e freqüentado pelos casais que ousam se aterrorizar eroticamente.

Quer ele tenha gostado disso ou não, a obra de Schnitzler foi considerada uma versão literária das idéias do seu conterrâneo e contemporâneo Sigmund Freud. Por ocasião do aniversário de sessenta anos de Schnitzler, Freud enviou-lhe uma carta na qual perguntava-se porque sendo tão próximos (compartilhavam amigos, eram médicos, judeus), ele não fizera nenhum esforço para se aproximar daquele artista que tanto admirava. Acredito que o tenho evitado porque sentia uma espécie de relutância a encontrar-me com meu duplo. (…) Encontro, sob sua superfície poética, as mesmas antecipadas suposições, interesses e conclusões que reconheço como próprios. Através dessas palavras, a ligação que nunca aconteceu na prática, se consolidou na teoria para sempre. Porém, nada como a leitura do Breve Romance de Sonho (originalmente Traumnovelle) para compreender porque acredita-se que Schnitzler escreveu a melhor tradução do ambiente vienense que criou a psicanálise. Compartilho com Freud a suspeita de que os escritores são capazes de dissecar o sofrimento humano melhor do que os psicanalistas jamais seremos capazes de fazê-lo e ainda aplacam nossa solidão. Afinal, de perto ninguém é normal mesmo.

Stanley Kubrick filmou essa história, lançada em 1999, que no Brasil foi intitulada De olhos bem fechados (com o extinto casal Kidman-Cruise). Para o cineasta foi o último sonho, uma vez que morreu durante o sono, dias depois de finalizada essa obra.

11/11/04 |
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