O anjo da casa
Sobre o filme As Horas e Virgínia Woolf
Ela custou a morrer. Sua natureza fictícia era para ela de grande valia. É extremamente mais difícil matar um fantasma que uma realidade. É assim que a escritora Virgínia Woolf, recentemente retratada no filme As Horas, descreve uma grande inimiga de sua produção literária: o Anjo da Casa. Foi numa conferência que proferiu para mulheres trabalhadoras em 1931 que Virgínia alcunhou esta metáfora. O Anjo da Casa é o perfil da mulher até a época vitoriana: solícita, compassiva, pura, não tem idéia ou desejo próprio, é uma Amélia. As Horas tem um personagem, Laura, que vive tentando ser este anjo.
O filme traça a vida de três mulheres em épocas distintas, mas unidas pela literatura: a escritora atormentada (Virgínia), a editora homossexual e a mulher comum, a leitora. Esta última é Laura, uma americana dos anos 50 que se afoga em tristeza e fantasias de suicídio, mesmo vivendo dentro de um mundo aparentemente perfeito. Solitária, sentia-se de alguma forma ligada ao romance Miss Dalloway escrito por Virgínia. Nenhuma delas tem relações amorosas selvagens ou injustas, seus homens são delicados e atenciosos, as admiram em sua fragilidade mas não as compreendem.
Poderíamos até dizer que estes homens são um tipo de algoz, já que cultivam a fragilidade das suas parceiras como quem possui um valioso vaso de porcelana, imóvel num canto da sala, mas isto seria uma grosseira simplificação. Creio que há uma melancolia feminina, que germinou no interior da estufa doméstica e que até hoje tempera de insatisfação mesmo as melhores conquistas que uma mulher pode ter. Mais do que dizer à mulher que o que ela faz não está de acordo com seu papel social, o fantasma do Anjo da Casa sussurra em seu ouvido que ela, ou o que sua vida lhe oferece, é inadequado.
Mal vestida, burra, saliente, tímida, freira, depravada, preguiçosa, descuidada, pegajosa, obsessiva, não há acusação que uma mulher não se faça, ou melhor que o Anjo não lhe sugira. Assim como aos amantes, lugares e atividades aos quais sempre falta alguma coisa, mesmo que não se saiba o que. Além disso, a melancolia feminina já não é exclusividade das mulheres confinadas ao lar. A agonia das donas de casa suspirantes, foi a primeira versão de uma depressão que hoje assombra a todos nós em maior ou menor grau. Todos aqueles que choram sem grandes motivos, se martirizam por miudezas e dormem sem ter sono. Laura representa esse lado banal da tristeza, esse sofrimento injustificável, esse fastio, que é hoje a maior assombração. Talvez ainda seja obra do Anjo da Casa.