O fardo de sobreviver
Sobre o filme O Pianista
O genocídio introduz um paradoxo: é preciso muita coragem para sobreviver. Convencionamos reconhecer um herói naquele que enfrenta a morte para salvar alguém ou uma causa com que se identifica, nos que morreram em combate. O filme “O Pianista” conta a história de alguém que lutou acima de tudo por sua própria vida. Não foi um covarde, porém entre a possibilidade de combater ou sobreviver, escolheu e foi escolhido para a segunda opção. Szpilman, protagonista do filme de Roman Polanski, é um pianista virtuoso, um jovem que já possuía certa fama em Varsóvia graças a que tocava no rádio. Em função disso, encontra algumas pessoas que se dispõe a ajudá-lo, como quem preserva uma obra de arte. Inúmeras vezes ele se salva por um triz, numa aliança entre o acaso e uma determinação de não se deixar morrer. Depois da guerra, exorciza sua história num livro de memórias, o que lhe permite viver tocando piano na Polônia até o ano 2000.
No filme somos apresentados a dois tipos de heróis: aqueles que contrabandearam armas para o interior do gueto e morreram, mas não sem antes matar alguns nazistas, e os sobreviventes, que aproveitaram alguma brecha ou ajuda para se salvar. Estes últimos estão condenados a viver com a culpa para sempre, se perguntando se havia algo mais que deveriam ter feito, se não teria sido mais digno morrer com os seus. Apesar disso seguiram tentando fazer algo com sua vida. A morte muitas vezes se apresenta como um alívio. Viver é passar a vida se explicando, se justificando, arriscando ao erro, ao fracasso, à insignificância. Leva-se uma existência sobre a terra para provar que temos alguma relevância para alguém. Como então manter-se vivo quando tudo aquilo que identificamos com nossa existência, todos aqueles que costumavam testemunhar nossa trajetória foram destruídos? A perda destes laços mais óbvios levam à necessária conclusão de que devemos perecer com eles. Destituídos de tudo que significava seu mundo, boa parte dos prisioneiros do nazismo se entregou ao tiro de misericórdia do holocausto.
Szpilman se salvou porque queria tocar piano. Mas não foi o único, os sobreviventes não foram necessariamente os virtuosos, os que tinham algum glamour em sua contribuição ao mundo, foram os que conseguiram encontrar dentro de si laços em nome dos quais seguir, estivessem eles em suas memórias, em seus sonhos ou na birra de vencer a morte. Cada um de nós tem estes laços e a tentação de perecer a cada nova perda. Nestes casos é preciso muita coragem para não morrer.