O Fim do Mundo e a Grande Decepção
Superstições sobre a virada do milênio
Não é difícil encontramos pessoas que estão delirantemente convencidas de que o fim dos tempos está chegando. Quando investigamos mais de perto isso revela uma certa verdade, porém mais particular do que geral. O seu fim está próximo, elas estão numa fragilidade em que suas referências estão se esboroando, o fim de que falam é de sua própria subjetividade, as rachaduras de sua estrutura psíquica anunciam a queda. O problema só começa quando essa crença particular contagia, e sabemos como contagia fácil discursos com certezas. Nossos contemporâneos estão cada vez mais relativistas, tudo é incerto, do futuro ninguém sabe e o presente é difuso de interpretações. Uma “boa” certeza faz seu séquito. Convenhamos, a certeza no fim do mundo não é uma certeza qualquer, ela se nutre duma crítica radical, tudo o que vemos não presta, só mesmo tentando outra vez. A questão é saber quantas seitas apocalípticas vão se anunciar até o fim do ano. Minha esperança é que não haverão suicídios coletivos, afinal, o fim está próximo e mais vale esperar o golpe do cajado do Senhor.
E por que mesmo o mundo terminaria no ano 2000, por que não antes em 1957 ou depois no 2038? O fato é que os números redondos convocam para que se feche um ciclo. O problema é que o número só é redondo se usamos o sistema decimal, mas quem nos garante que os arquitetos do universo usam esse sistema tão humano, tão pouco prático. Caso eles usem o sistema duodecimal, que usamos ainda parcialmente, estaríamos no ano128 (que seria escrito com dois dígitos) do século XIII. Isso ainda se usássemos o mesmo ponto zero, mas quem nos garante qual e aonde é o ponto zero?
Quem espera o fim dos tempos por estes dias certamente é cristão, pois seria o encerramento de um ciclo desde a chegada do salvador. Porém surge um novo problema: aproximadamente dois mil anos, pois ninguém está seguro que as contas estejam certas, alguns cálculos situam o nascimento de Cristo de 4 a 7 anos antes da data aceita. Ou seja, a matemática do fim do mundo ou de seu recomeço nos coloca inúmeros problemas.
É chato admitir que esse calendário que usamos todos os dias seja baseado numa ficção, que não haja um ponto seguro onde apoiar o ano zero. Talvez nossa obsessão pelo 2000 seja uma maneira de refundar a posteriori a falta de uma certeza inicial. O ano 2000 é um marco que não divide nada a não ser o calendário, não vamos testemunhar a entrada de uma nova era. Os ciclos da história não respeitam nossa superstição numérica. Mesmo sendo arbitrário devemos admitir que as festas de ano novo são de alguma maneira o aniversário possível da nossa civilização ocidental e cristã, querer comemorá-lo funciona como comemorar o aniversário de cada um de nós, é sempre um ritual de aposta e refundação.
A idéia de um tempo linear, que anda para frente e em progresso é uma idéia relativamente nova se considerarmos toda a aventura humana, o tradicional foi sempre pensar o tempo como circular e renovável. O tempo correria dentro de um círculo de começo, meio, fim e recomeço e assim por diante o cosmos seria sempre renovado, não envelheceria. Isso coincidindo, na maioria das vezes, mas não necessariamente, com o ano solar. As mitologias mais antigas são compostas boa parte por um discurso cosmogônico que era orquestrado regularmente com uma participação humana indispensável na renovação cósmica. Talvez isso explique a nossa fixação em ciclos, em datas redondas, como um resto ainda indomesticado do modo de pensar arcaico.
É da informática, vejam só, do setor mais racional e tecnológico, que ainda podemos ter uma esperança de que o milênio possa passar com algum barulho. O bug do milênio promete, o problema é saber até que ponto ele não faz parte do discurso apocalíptico, que ele também não esteja inflacionado justamente por nosso desejo de testemunhar algo na virada do século. Existem previsões catastrofistas sobre uma possível pane nos computadores por não reconhecer matematicamente os números da virada. Acreditem ou não, há gente estocando comida e água esperando o pior. Os computadores travariam, entrariam em pane e tudo que é comandado por eles entraria num grande colapso, seria um blackout sem precedentes. Se for para pensar em catástrofes acho mais razoável esperar da informática, de algo tecnológico, mas humano, por que a natureza nunca deu a mínima para nossas pretensões proféticas.
Não é sem uma ponta de desilusão que vamos ter que dizer à turma do fim do mundo que não vai ser dessa vez. Compreendemos como estamos carentes de manifestações divinas, como faz tempo que os deuses não nos visitam, mas eles vão ter uma grande decepção, o milênio vai virar e não vai acontecer nada. O sol continuará a brilhar depois da noite, os mares não invadirão a terra, nenhum deus descerá para separa os justos dos ímpios. O mundo seguirá igual, talvez um pouco mais desesperançado, afinal, ainda não foi agora que os deuses olharam para nós.
Na virada milênio vamos ter a mesma sensação dos nossos aniversários de números redondos, quando contrastamos os planos que sonháramos e no que nos transformamos. Seguimos tão igual a nós mesmos, melhoramos aqui e ali, mas seguimos com os mesmos defeitos crônicos apenas em novas versões. A principal constatação da virada do milênio é que o futuro não começará. O ano 2000 sempre foi vendido no passado recente como as portas do futuro cujo passaporte seria fornecido pela tecnologia, mas o mundo dos Jetsons comparecerá a festa timidamente. O mundo continua tão ele mesmo, tão diferente, mas sofrendo problemas crônicos que sempre nos assolaram, ainda se morre de fome, ainda se morre vítima de guerras imbecis, as segregações raciais, culturais, étnicas continuam.
O acontecimento político do ano não poderia ser mais ilustrativo do quanto estamos atolado nesse século. Na Iugoslávia, um aprendiz de Hitler comete um genocídio dentro da Europa e a comunidade internacional intervém dum modo tão truculento quanto a besta que propõe derrubar. A Rússia aproveita para ressuscitar a guerra fria e ameaça com um arsenal atômico suficiente para destruir o planeta várias vezes. Isso tem mais gosto de 1984 de Orwell do que do 2001 de Kubric. A tão esperada tecnologia do futuro comparece com aviões invisíveis, mísseis certeiro, bombardeios noturnos numa tentativa de guerra sem soldados.
Certamente nosso século não foi em vão, foi um século denso e plural, vai ser conhecido no futuro como o século da mulher, como um século que fez algo pela democracia e com certeza sobre quando começamos a conviver de uma maneira melhor com a alteridade das raças das cultura e das etnias e com outras possibilidades do desejo sexual. O problema é que esse progresso é subterrâneo, de difícil mensuração, não vem por saltos mas é desse parco progresso que se pode esperar algo de melhor para o futuro humano, algo que a tecnologia não tem nos dado.
Entre os assustados com a entrada do milênio estão os obstetras. Eles não vão ter reveillon. Muitos casais estão esperando um planejado filho para o raiar da nova era. O cálculo é para ser o primeiro, porém corre o risco de ser o último desse século azarado. Vai haver um baby boom na virada do ano. Isso nos dá um índice que se espera que do próximo milênio, ou pelo menos do seu início, um tempo de bons augúrios. Nada contra a vinda de bebes, ao contrário, nada mais nos demonstra a aposta no futuro do que a encomenda de bebes, mas porque nascer nesta data? A primeira idéia é de uma natureza domada, agora os bebes vão nascer quando nós quisermos. A segunda questão aponta para o velho mito do nascimento do salvador. Afinal, em dois mil seria o aniversário dos aniversários da vinda de um salvador, o que se espera de uma criança que nasça neste dia? Fim do século XX e nós esperando um salvador…
PS: Por favor, senhores matemáticos, já estou convencido que o milênio só no ano que vem, mas não estou falando de algo razoável, estou falando da crença, algo mágica dos números redondos, e 2000, convenhamos, soa bem.
Agosto de 1999
Publicado no caderno de cultura da Zero Hora