O gato e a montanha
Sobre a leitura da Montanha Mágica
Quando vejo essas entrevistas que são feitas a personalidades importantes, fico fantasiando que aconteceria se algum dia eu fosse suficientemente importante para que me perguntassem qual meu livro preferido, filme, prato, palavra, lugar. Respondendo mentalmente à entrevista que nunca me fizeram, o que me ocorre é que nessas horas não lembro de nada que li, de nenhum filme que vi, de nada relevante, pânico de opinar.
Mas esses dias respondi a uma dessas perguntas, numa mesa com amigos, sobre o livro que levaria a uma ilha deserta, e ocorreu-me de dizer: “A Montanha Mágica”. Quando fui justificar o proquê da escolha, não tinha nada para dizer sobre o conteúdo da obra, mas sim sobre a quantidade astronômica de tempo que levei para lê-la. Sou uma leitora lerda, dispersiva, o que acaba tornando-me alguém com muito menos leitura do que gostaria. Sorte que estou ficando um pouco mais velha, então acumulo mais algumas horas lidas em função do maior número de horas vividas.
Na época da leitura da “Montanha” eu tinha um gato, o Koshka, que como bom felino, era extremamente ciumento de tudo o que subtraísse dele minha atenção, e o livro de Thomas Mann era um rival e tanto. Não porque eu o lesse muito (ele era mesmo um rival volumoso), mas porque passava longos periodos com ele no regaço divagando, e na opinião do gato meu colo era possessão sua.
Iletrado, Koshka não sabia que, na realidade, eu não estava lendo todo aquele tempo, só sonhando, e resolveu eliminar o suposto inimigo: urinou nele. Quando peguei o livro para mais uma sessão de devaneios senti o cheiro horroroso de xixi de gato macho e passei um bom tempo procurando o local do crime. Acabei descobrindo que era o próprio livro, que foi para o lixo, tendo eu que terminar minha leitura num exemplar emprestado.
Dias atrás eu buscava uma referência literária sobre o tema da beleza e lembrei-me de uma passagem em que Hans Castorp senta atrás da mulher amada durante uma conferência e fica admirando-lhe um dos antebraços que mal se enxerga entre as mangas, repousado na cadeira da frente. Se de braços admiráveis se tratasse eu teria muito mais com “Os braços” de Machado, e quando a localizei o trecho vi que a referência era mais bela ma minha memória do que na prática. Além disso, folheando a obra vários anos depois, senti um tédio a respeito das longas discussões filosóficas das personagens, que também me ocorria na época.
Era o sem sentido da vida daqueles enfermos confinados num sanatório nas montanhas, as minúcias, o cotidiano reduzido às rotinas do corpo, a vida mínima sobre a qual pensavam tanto,discutiam tanto, o que me engatava. Eu era como Castorp: ele divagando sobre um braço repousado na cadeira da frente, fazendo em seu pensamento uma miscelânea entre o que escutava do conferencista e as idéias suscitadas pela pele alva daquele braço; eu perdida nos sonhos provocados pela leitura, misturados às minhas fantasias. Lembrava com carinho daquela passagem, porque ela era a figuração não da Montanha Mágica,o livro em si, mas da minha experiência de lê-lo. Hans Castorp exilou-se da sua vida sem graça num cotidiano ainda mais medíocre, mas rico de pensamentos. O livro, esse e todos os outros, são minhas montanhas mágicas. Foi graças ao Koshka que isso se revelou, o gato que tentou despertar-me dos sonhos urinando neles. Não funcionou.