O gato e a montanha

Leitura é também repouso, intervalo para pensar.

Quando vejo certas entrevistas feitas a personalidades, fico fantasiando o que aconteceria se algum dia eu fosse suficientemente importante para que me perguntassem sobre minhas preferências. Qual seria meu livro preferido, filme, prato, palavra, lugar? Respondendo mentalmente à entrevista que nunca me fizeram, costuma dar branco. Não lembro de nada que li, de nenhum filme especial. Nada a declarar.

Mas esses dias respondi a uma dessas perguntas, numa mesa com amigos, sobre o livro que levaria a uma ilha deserta. Ocorreu-me: “A Montanha Mágica”, clássico do escritor alemão Thomas Mann, publicado em 1924. O livro é sobre um engenheiro que vai parar em um sanatório para tuberculosos, do qual não se anima a sair, embora não esteja propriamente doente. Quando fui justificar a escolha, não me ocorreu nada sobre o conteúdo da obra, nem sobre seu estilo, mas sim sobre a quantidade astronômica de tempo que levei para lê-la. Sou leitora lerda e dispersiva, por isso leio muito menos do que gostaria.

Na época da leitura da “Montanha”, na minha década dos vinte, eu tinha um gato chamado Koshka. Como bom felino, ele acreditava ser o centro do meu mundo e via no livro de Mann um rival e tanto. Não porque eu de fato lesse muito, mas porque passava longos períodos divagando, com ele no regaço. Só que na opinião do gato meu colo era possessão sua.

Iletrado, Koshka não sabia que a maior parte do tempo eu estava só sonhando. Resolveu mostrar sua supremacia frente ao suposto inimigo: deixou-o impregnado daquele cheiro horroroso de xixi de gato. Não havia remédio, o exemplar foi para o lixo tive que terminar a leitura num emprestado.

Folheando a obra anos depois, senti o mesmo tédio a respeito das longas discussões filosóficas das personagens que me ocorria na época. Mas minha empatia era com o sem sentido da vida daqueles enfermos, confinados num sanatório nas montanhas. No livro, o cotidiano reduzido às rotinas do corpo, onde quase nada ocorre, contrasta com grandes polêmicas e expressivas emoções. Esse paradoxo me engatava.

Eu me sentia como Castorp, o personagem principal, que nãoqueria ficar bom, covarde para voltar à sua vida. Em certa cena, vê-se o protagonista distraído, divagando sobre o braço da mulher atraente que via repousado na cadeira da frente durante uma palestra. A imaginação podia voar, seu dono estava seguro no retiro disciplinado do sanatório, pobre em fatos mas rico em pensamentos. No meu caso, a própria leitura desse livro funcionava como uma “Montanha Mágica”. Por longo tempo significou repouso, intervalo para pensar. Foi graças a Koshka que sua natureza se revelou: marcando território, tratou o objeto como se fosse um lugar. Gato sabido: um livro é uma terra de sonhos.

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