O intransmissível da experiência

Sobre o filme O Senhor dos Anéis, em 07/01/2004

O Senhor dos Anéis é a prova de que fantasia, efeitos especiais e lutas só valem a pena se forem amarrados numa trama genuinamente humana. Apesar de ambientada num território imaginário, a Terra Média, e de envolver povos fictícios como elfos, feiticeiros, hobbits, anões e árvores falantes, a história de Tolkien é o relato feito por um homem que lutou numa guerra de verdade, como seus heróis.

Oferecendo ao leitor o distanciamento que os contos de fadas proporcionam, o “Era uma Vez” que garante que é tudo ficção, ele contrabandeia seus sofrimentos e esperanças, fruto de um tempo em que os envolvidos foram obrigados a desenvolver algum tipo de heroísmo. Mas o grande contraste da saga, é entre a pacata vila dos Hobbits, onde tudo começa, e as vertiginosas aventuras que eles são levados a viver.

Há uma cena bem singela do filme, que embora sem par no livro, traduz bastante bem o episódio final da saga. É um momento de encontro destes dois registros, o da aventura e o do cotidiano, ela é assim: após incríveis façanhas, os hobbits voltam para casa e se reúnem numa taverna para beber, como nos velhos tempos. Na taverna vê-se que nada mudou, os seus conterrâneos, o mais caseiro e provinciano dos povos, seguem sua rotina, incapazes de compreender um milésimo daquilo que eles tinham vivido.

A experiência só pode ser compartilhada entre os protagonistas. Mesmo que relatem suas aventuras, há uma solidão para aqueles que enfrentaram algum tipo de sofrimento, que escapa aos que dele foram poupados.

Também é assim para os que viveram dramas pessoais como doenças graves, a morte de alguém muito amado, a violência. Uma experiência radical separa a sua vítima dos que não a viveram, uma incomunicabilidade espera aos que voltam do inferno. Quanto às cicatrizes, há os que passam a ignorá-las, os que vivem para elas e os que as transformam em arte, como Tolkien. A única certeza é que elas doerão para sempre. Viver, mesmo quando se teve a sorte de enfrentar sofrimentos de baixa intensidade, é colecionar marcas de uma certa solidão irremediável. Deve ser esta a sina dos velhos.

Como seu autor, os Hobbits optaram por escrever suas aventuras. Narrar, na tentativa de compartilhar e traduzir, é uma rebeldia contra o abismo que separa os homens.

07/01/04 |
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