O livro de areia
Texto sobre autoria com reflexões sobre Borges e luis Fernando Verissimo
“em 1833 Carlyle observou que a história universal
é um infinito livro sagrado que todos os homens escrevem
e leem e tentam entender, e no qual também os escrevem.”
J.L.Borges
“No fundo, no fundo, os escritores passam o tempo todo redigindo uma nota de suicida. Os que se suicidam mesmo são os que a terminam mais cedo.” … “Há os que se suicidam antes para escapar da terrível agonia de encontrar um final para uma nota. O suicídio substitui o final. O suicídio é o final.” … ”Borges disse que o escritor publica seus livros para livrar-se deles, senão passaria o resto da vida reescrevendo-os. O suicídio substitui a publicação. No caso o livro livra-se do escritor.”
Estas palavras pertencem a um texto de Luis Fernando Veríssimo, chamado “O suicida e o computador”. As frases acima fazem parte de uma nota suicida, cujo escritor, entre cada trecho, sobe num banquinho, põe a corda no pescoço, mas não consegue evitar de dar uma olhada na tela, constatando imperfeições no seu derradeiro texto que clamam por melhorias. Repetidas vezes sobe no banquinho e desce para intervir no aprimoramento de sua nota, até concluir que é impossível o suicídio quando se está escrevendo num computador, onde o texto sempre pode melhorar.
Com ou sem computador, escrever é uma forma de prorrogar a morte sem esquecê-la um instante sequer. Um texto finalizado seria o fim, descartaria o escritor, o representaria como a palavra representa a coisa, dispensando sua condição concreta. Viver é produzir um texto infinito enquanto duramos, ao partir é um rastro de palavras que deixamos atrás de nós. Cada momento já vivido deixa de ser fato para se tornar palavra, a morte é o último e maior deles, mas se trata de uma palavra que se livrou do seu autor. Como disse certa vez uma mocinha: “morrer é cair num sono onde tu não falas com ninguém e não acorda nunca mais”.
Não é à toa que Veríssimo cita Borges, mestre da literatura fantástica (entre outras) além de leitor privilegiado. Este escritor argentino sempre denunciou que somos parte de um discurso infinito, que nos escreve enquanto pensamos redigi-lo, e que a literatura está coalhada de metáforas universais que se impõe aos nossos sonhos pessoais. Não passamos de frágil elo de uma grande trama ficcional em que alguns participam como leitores e outros como redatores de um grande sonho literário coletivo.
Dentre os últimos textos de Borges está a descrição do que ele chamou de um “objeto adverso e inconcebível”, trata-se do “Livro de Areia”, no qual “o número de páginas é exatamente infinito, nenhuma é a primeira, nenhuma é a última”. Este, pelo enigma das páginas que não cessavam de se reordenar, deixava o leitor escravo de sua infinitude, absorvendo todos seus interesses, afastado de tudo e de todos. É um monstro do qual o dono tem que se livrar antes que ele o anule por completo, o devore. A escrita de Borges é pontilhada de momentos fantásticos (embora insista em que as verdadeiras metáforas já foram todas inventadas, sempre existiram, só nos cabe repeti-las), mas é também um guia de leitura da literatura universal. Ele foi capaz de uma viagem tão surpreendente e vasta no tempo e no espaço, que é digna de fazer corar Harold Bloom e seus catálogos e listas de gênios. A leitura crítica de Borges é orgânica, ele se deixa tocar pelo que lê, como se absorvesse cada página e ela se impusesse como um sonho que temos a compulsão de comentar e interpretar ao despertar.
Como leitor, Borges surpreende pela capacidade de se deixar falar desde as entranhas do Livro de Areia, no interior de cujas páginas provavelmente viveu até o fim dos seus dias. Cego, continuou dando a ver através das palavras, fazendo-nos prisioneiros de seus livros, os por ele escritos e por ele recomendados. Ler um texto de Borges produz esse efeito de infinitude pela quantidade de referências que se multiplicam, janelas que se abrem. Ele jamais reduz um significado, mas sim aponta caminhos, mapas de tesouro. Aliás é dele e bem lhe cabe a frase de que “um grande escritor cria seus precursores”.
A proposta deste texto é de falar sobre autoria, sobre a qual creio me apoiar na fantasia borgiana para dizer que escrevemos por aquilo que em nós se impõe. Escrevemos algo que em nós se faz dizer, palavras ventríloquas que dão voz de marionete a um texto que às vezes comparece quando o chamamos, assim como por vezes se esconde. Jamais escrevemos sobre o que não nos toca.
Não mentimos quando supomos que o texto espera por nós no teclado do computador, como para os antigos estaria no interior da caneta ou da pena. É interessante essa certeza de que aquilo que temos que escrever não se encontra em algum recanto do cérebro, mas sim num objeto externo. É como se psicografassemos mensagens enviadas por nós mesmos, numa comunicação direta entre uma dimensão de nosso ser que é rebelde com seu dono e o objeto mágico capaz de revelá-la: o computador, a caneta, o papel em branco.
É aqui que reencontramos a morte, o ponto final. Podemos seguir a fantasia de Luis Fernando, de que algum dia concluímos a mensagem que devíamos ao mundo e podemos enfim morrer. Apesar de que ele considere impossível se suicidar escrevendo no computador, creio que mesmo sem ele persistiríamos vivos escravos da obra infinita, do qual deduziríamos, é impossível se suicidar escrevendo. Borges diria que também é impossível se suicidar lendo, pois sempre haverá mais sonhos procurando por suas vítimas, se fazendo sonhar por novos leitores. O verdadeiro objeto mágico não é o teclado nem o papel, é o Livro de Areia, este discurso infinito, sem começo nem fim, que fala em cada um de nós impondo-nos a enunciação de um trecho.
“Na ordem da literatura, como nas outras, não há ato que não seja coroação de uma infinita série de causas e fonte de uma série de efeitos”
Um senhor que respeito muito, meu pai, disse uma vez que se aposentaria para entregar-se à leitura de sua vasta biblioteca. Por sorte teve ocasião de realizar seu voto, assim como de escrever e traduzir por prazer, para escoar seus pensamentos tristes, domá-los. Provavelmente a cegueira de Borges e a velhice de meu pai tenham lhes permitido habitar as entranhas monstruosas do Livro de Areia. É preciso uma certa abstinência do mundo real, algum tipo de aposentadoria, para que as palavras se revelem. É por isso que contem alguma dimensão da morte, pois quando as escrevemos não estamos fazendo sequer o gesto de nos matar, quem escreve não faz a hora, a palavra e o ato se excluem mutuamente. Em linguagem popular, cachorro que late não morde.
Depois que o texto abandona o seu autor, livrando-se dele, como citava Luis Fernando, começa a parasitar os seus leitores ou ouvintes, independente para produzir efeitos e influenciar pessoas. Lembro-me de ter lido uma entrevista de Geraldo Vandré, autor do hino da esquerda brasileira “Para não falar de flores”, na qual ele falava de uma profunda crise pessoal e do quanto não se reconhecia no espaço e significado que sua música tomou em nossa história.
Enfim a autoria é possível, apesar de que todos os argumentos que arrolei levam a pensar uma “desubjetivação”, ali onde se supõe que o sujeito, mais que nunca, se assina. O mesmo Veríssimo, aquele que nos explicou o quanto uma vida se justifica por deixar dela uma carta (ou sair com a última palavra), tem outra crônica que pode vir em nosso auxílio. Ela se chama nada menos que “Gigolô das palavras”. Ele defende o fato de que não devemos nos deixar dominar pela gramática e suas leis rígidas que oprimem e esterilizam a língua. “As múmias conversam entre si em gramática pura”. Sua posição é de que é preciso cortar seu naco como escritor, fazer seus trajetos de leitor e ter coragem de assinar seu pedacinho. “Sou um gigolô das palavras. Vivo as suas custas. e tenho com elas a exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas.”.
Borges, como leitor, demonstrou quão ativa pode ser esta função aparentemente passiva. As evidências levam ao contrário, parece difícil pensar o leitor como autor, ativo, de um trecho do Livro de Areia. Afinal, o leitor se abandona nos braços do texto, da cadência, da história que o autor criou, a entrega ao livro é parte fundamental do gosto da leitura, é um refúgio imaginário, um escurinho do cinema portátil onde as luzes do mundo se apagam.
É claro que ele também via o escritor como parte da ficção que criava, ele também estaria se entregando, quase passivo, crédulo, a esse trecho de ficção que escrevia enquanto devaneava. Para tanto o autor deve acreditar em seu personagem: “não resta dúvida de que Cervantes conhecia bem Don Quixote e podia acreditar nele”, escreveu Borges. Mas o leitor, aquele que viaja no devaneio do escritor, é também autor de um determinado percurso de leituras. Ele tece caminhos com suas escolhas, cria tramas que constroem sua vida e a cultura de seu tempo. Boa parte da obra de Borges, portanto, é feita de seus depoimentos de leitor, que elevaram a crítica à condição de obra literária propriamente dita. Através dos seus textos, os seus autores prediletos tornam-se personagens de uma história ficcional da literatura. Desta forma a dimensão de autoria se estende ao leitor.
Para se autorizar à autoria, para ser tautológica, é preciso se deixar ser receptáculo de tudo o que fala em nós, mas ter a coragem de corrompê-lo, reinventá-lo, profaná-lo. Com o discurso que fala em nós, o duelo é eterno. Se ele nos anular, falaremos a língua das múmias, perderemos a singularidade, com a qual assinar a autoria de umas mal traçadas linhas ou de uma vida. Mas depois de apresentados ao Livro de Areia resta uma saída: se é inevitável ser seduzidos por ele, aprendamos a falar desde o interior de suas entranhas. Ao final deste conto de Borges, o proprietário do Livro de Areia livra-se dele abandonando-o numa estante da Biblioteca Nacional, usando o princípio de que uma floresta é o melhor lugar para esconder uma folha. Curiosamente, assim fazendo ele o devolveu ao seu lugar, ele o plantou em terra fértil, assim a folha se tornou floresta. A biblioteca, com seus novecentos mil livros, é o verdadeiro monstro, esse no qual ele Borges passou a vida inteira, para nossa sorte.
Bibliografia citada:
Borges, Jorge Luis – Prosa Completa, Vol. 2, Ed. Bruguera, Barcelona, 1980.
– Magias parciales Del Quijote
– Nathaniel Hawthorne
– La flor de Coleridge
– El libro de Arena
Veríssimo, Luis Fernando – O Suicida e o Computador, L&PM, Porto Alegre, 1992.
– O Gigolô das Palavras, L&PM, Porto Alegre, 1982.
Texto publicado no Correio da APPOA, número 119, ano XI, novembro de 2003