O moicano
Pelo menos desde o século XIX a sociedade formata o mesmo adolescente que marginaliza.
“Seus cabelos estavam cortados quase até o couro cabeludo, com exceção de uma pequena tira no cocuruto da cabeça, puxada para baixo sobre a testa para formar uma franja”. Assim , o jornal britânico Daily Graphic descrevia um jovem infrator que estava sendo julgado. A personagem era esmiuçada em detalhes quase literários, em matéria que, além do corte de cabelo moicano, chamava a atenção para a vestimenta e postura do jovem meliante. Em suas atraentes narrativas sobre gangues juvenis, a imprensa ajudou a construir o estilo dos jovens delinquentes típicos de uma época turbulenta. Detalhe: estamos falando de 1898, século XIX.
Os Hooligans, como passaram a ser nomeados nos jornais, rapidamente assumiram os estereótipos e inclusive as denominações que lhes eram atribuídas, numa clara simbiose entre criadores e criaturas. A descrição do fenômeno é de Jon Savage, autor do livro A criação da juventude, leitura quase obrigatória nestes tempos de discussão sobre a redução da maioridade penal.
Os adolescentes de cada época têm o dom involuntário de revelar as fraturas do tecido social. Eles não são revolucionários natos, apenas são observadores, recém-chegados ao amor, ao sexo, à circulação no mundo externo. Para construir sua identidade aprenderão a buscar sua cotação em nosso sistema de valores. Curiosos a respeito dos adultos desde a infância, não levam em conta o que dizemos: é o que fazemos e pensamos que, mesmo sem querer, descobrem. A tendência é identificarem-se com os desejos mais secretos dos adultos, dos quais há pistas por todos os lados. Por exemplo: não temos o trabalho e a aprendizagem em grande conta, admiramos o sucesso dos que conseguem poder, prestígio e dinheiro sem esforço e à revelia de seus mestres, com muito prazer e tempo livre.
Assim como fez a imprensa no século XIX, nossa sociedade foi criando seus personagens marginais, alimentando sua identidade. A cada época construímos, mesmo sem perceber, um ideal de adolescência. Na nossa, o segredo é que se viva para consumir e gozar a vida, mais que seus antepassados e a qualquer custo. Isso serve para os que nascem em berço de ouro, mas também é a mesma fórmula que adotam os que, marginalizados, precisam chegar aos mesmos pódios pelos atalhos do exército do tráfico.
Portanto, quando queremos trancafiar os jovens, principalmente os mais pobres, responsabilizando-os por nossas cidades em guerra civil, é dos nossos desejos que estamos nos envergonhando. Ao acusá-los de perversos e imorais, esquecemos que eles são nosso espelho. Fazemos deles a lata de lixo onde despejar a incivilidade dos anseios egoístas que regulam a sociedade que constituímos. Além de injusta, é uma manobra inútil: são apenas nossas criaturas e nós os criadores.
Diana, seu texto me chega num momento em que estou envolto com o estudo da adolescência como uma formação cultural… É muito pertinente atentarmos para os efeitos da idealização deste construto social. Ao encarnar os sonhos recalcados dos adultos, os adolescentes tornam-se protagonistas de uma trama ambígua que os idealiza ao mesmo tempo em que os tira para depositários do lixo social. É… A adolescência “inquieta” de alguma forma, causa “estranheza”. Logo pensei no “Estranho”, de Freud. Um estranho que remonta ao muito familiar; que deveria permanecer oculto, mas apareceu.
Obrigado pelo texto. Tua forma de escrever me inspira.
Um abraço…